Os novos protocolos, emitidos pelas autoridades médicas nas regiões europeias mais castigadas pela pandemia do coronavírus orientam na prática os profissionais da saúde a abandonarem os pacientes idosos à própria sorte. Foto: Uma tenda médica para pré-triagem sendo montada em frente ao Santa Maria Nuova Hospital em Florença na Itália em 25 de fevereiro de 2020. (Foto: Carlo Bressan/AFP via Getty Images) |
Diante de um número bem acima de meio milhão de casos confirmados da Doença do Coronavírus 2019 (COVID-19) na Europa, um número cada vez maior de autoridades médicas regionais começou a emitir normas e protocolos pedindo que os hospitais priorizem os pacientes mais jovens à custa dos mais velhos.
Na Itália e na Espanha, os dois países europeus mais castigados pela pandemia do coronavírus, os médicos que atendem em unidades de terapia intensiva, abarrotadas há semanas, tomam decisões sobre a vida e a morte de quem irá receber tratamento de emergência. Os novos protocolos, no entanto, se resumem ao fim e ao cabo, às diretrizes do governo que na prática orientam os profissionais da saúde a abandonarem os pacientes idosos à própria sorte.
Fora as questões éticas envolvidas no racionamento da assistência médica oferecida segundo a idade, negar cuidados médicos aos idosos, muitos dos quais contribuíram a vida toda para o sistema de saúde e bem-estar social, também joga os holofotes em cima dos pontos fracos da medicina socializada do Sul da Europa, onde medidas de austeridade impostas pelo Banco Central Europeu resultaram em massivos cortes orçamentários no sistema de saúde pública.
Na Espanha, o governo regional da Catalunha, região duramente atingida pelo coronavírus, emitiu um protocolo confidencial que na prática orienta que os idosos que forem atingidos pelo coronavírus devem morrer em casa.
Em documentos vazados para inúmeros órgãos de imprensa espanhóis, o Serviço Médico de Emergência da Catalunha (Servicio de Emergencias Médicas, SEM) instruiu médicos, enfermeiros e equipes de ambulâncias com resgatistas socorristas para informarem as famílias de pacientes idosos com coronavírus que "a morte em casa é a melhor opção".
O documento afirma que morrer em casa é mais humano, porque evita o sofrimento: os pacientes podem morrer cercados pelos familiares, algo que não é possível em hospitais superlotados. O protocolo também aconselhou o pessoal da área médica a evitar falar sobre a falta de leitos hospitalares na Catalunha.
As recomendações, endossadas pelo Conselho de Associações de Médicos da Catalunha (Consejo de Colegios de Médicos de Cataluña), comunica que pacientes com mais de 80 anos de idade não devem ser entubados e devem receber apenas "terapia com máscara de oxigênio". As diretrizes recomendam que pacientes acima de 80 anos que estejam sufocando recebam "tratamento com morfina para dar conforto e aliviar a sensação de dispneia".
O SEM também aconselhou profissionais da saúde a otimizarem os recursos médicos na atual situação de emergência e "evitar atender pacientes que possam se beneficiar pouco". Foi pedido ao pessoal da área médica que reservasse o material "para os pacientes que podem se beneficiar mais, em termos de anos de vida salvos".
O Ministro da Saúde da Catalunha, Alba Vergés, negou que a diretiva discrimina pacientes idosos. O chefe da equipe médica do SEM, Xavier Jiménez, também negou, mas admitiu que o documento existe. "Não estamos fazendo nada além de dar aos pacientes a melhor opção para a situação deles", salientou ele.
Em outras regiões da Espanha, a Sociedade Espanhola de Medicina Intensiva, Crítica e Unidades Coronárias de Madri (Sociedad Española de Medicina Intensiva, Crítica y Unidades Coronarias, SEMICYUC) recomendou que o máximo de esforço terapêutico deve ser reservado aos mais jovens com maiores chances de sobrevivência. Se houver escassez de leitos hospitalares, àqueles com mais de 80 anos ou com Alzheimer deveriam ser negados tratamentos médicos.
Na Itália, um documento elaborado pela unidade de gerenciamento de crises da cidade de Turim ao norte do país também propôs que as vítimas do coronavírus de 80 anos ou mais ou com problemas de saúde deveriam ter acesso negado aos cuidados intensivos caso não haja leitos hospitalares suficientes.
Em um documento vazado para o jornal britânico The Telegraph, o departamento de proteção civil da região de Piemonte, assinala:
"Os critérios para o acesso à terapia intensiva em casos de emergência devem incluir idade inferior a 80 anos ou uma pontuação no Índice de Comorbidade Charlson (que indica o número de problemas de saúde do paciente) inferior a 5."
"O crescimento da epidemia atual torna provável que em algum momento se atinja um ponto de desequilíbrio entre as necessidades clínicas dos pacientes com COVID-19 e a disponibilidade efetiva de recursos intensivos."
"Caso seja impossível fornecer a todos os pacientes serviços de terapia intensiva, será necessário aplicar critérios de acesso ao tratamento intensivo, dependendo dos limitados recursos à disposição."
Luigi Icardi, consultor de saúde de Piemonte, salientou:
"jamais imaginei ter que passar por isso. Ele (documento) é compulsório e estabelecerá, em caso de saturação das enfermarias, um código de precedência para o acesso à terapia intensiva com base em certos parâmetros, como o potencial de sobrevivência."
Na Holanda, médicos foram acusados de procurar racionar a escassez de leitos em unidades de terapia intensiva, aconselhando pacientes idosos com COVID-19 a desistirem do tratamento hospitalar, de acordo com a agência de notícias Reuters.
Os parlamentares holandeses manifestaram preocupação depois que idosos se queixaram de terem recebido telefonemas de médicos, o deputado Henk Krol, líder do partido 50PLUS alertou para a discriminação etária:
"um octogenário não é igual ao outro. Há os com oitenta anos de idade que estão em forma e disputando maratonas e há os cinquentões que têm problemas de saúde."
O Ministro da Saúde, Hugo de Jonge, negou que as ligações telefônicas de médicos fazem parte da política oficial do governo. Ele adiantou à Reuters que a troca de ideias sobre o "testamento vital" entre clínicos gerais e pacientes com graves problemas de saúde não é nada de tão extraordinário:
"É uma prática padrão dos médicos. Chamamos isso de testamento vital, significa ter uma conversa com as pessoas sobre 'o que elas desejam caso fiquem doentes.'"
"Os pacientes podem dizer: 'se chegar a ponto de eu precisar de um respirador, se for preciso ir para a UTI, eu preferiria não ir'. Essa é uma das possibilidades, mas essas conversas não se baseiam na idade dos pacientes."
Em uma entrevista concedida em 15 de março no programa da TV holandesa WNL Op ZondagMarc Bonten, microbiologista do Hospital Universitário de Utrecht, ressaltou:
"qual é a melhor maneira de servir a humanidade? Aspectos como quem tem maior chance de sobreviver em terapia intensiva terão que ser levados em conta. Cabe aos médicos avaliar quem tem a melhor chance de sobreviver."
Voltando à Espanha, Óscar Haro, diretor de uma escuderia de motos, explicou em um vídeo que viralizou no YouTube como seu idoso pai morreu de coronavírus depois que lhe foi negado um respirador por conta da sua idade:
"Meu pai trabalhou dos 14 até os 65 anos. Ele nunca pediu nada. Em 18 de março, ele precisava de um respirador para não morrer, o que lhe foi negado... Essa é a nossa Espanha. A geração do meu pai construiu o país, seus reservatórios, estradas, agricultura, trabalhando 14 horas por dia, saindo de um período pós-guerra e agora estão sendo abandonados para morrerem."
"Eu não consigo entender como alguém como meu pai, que trabalhou a vida toda, contribuiu para a previdência social deste país pôde morrer porque não há respiradores, porque ele não pôde ser tratado por conta de regulamentações que determinam que não é mais interessante cuidar de quem tem 75 anos e portanto são deixadas de lado para que morram. Estamos abandonando à própria sorte a geração que construiu este país."
"Dizemos que temos uma incrível previdência social, quando profissionais da saúde sequer têm luvas para usar. Hoje de manhã eles não tinham macacões nem máscaras. Não me entra na cabeça o fato de que a meu pai que está junto com sua mulher desde os 15 anos de idade não tenha sido permitido se despedir dela."
Enquanto isso, Ivan Calle Zapata, técnico de futebol em Martorell, um município da Catalunha, escreveu sobre como ele perdeu seus avós paternos e maternos para o coronavírus:
"Minha avó de 82 anos e meu avô de 71 anos não morreram da # COVID-19, DEIXARAM QUE ELES MORRESSEM. @Salutcat (autoridades sanitárias catalãs) negaram a eles respiradores e que dessem entrada na UTI, assim como negaram a outros idosos da Catalunha. Segue um tópico em aberto, para eles e para todas as famílias destruídas:"
Diante da crescente indignação pública frente à falta de tratamento aos idosos, em 3 de abril o governo espanhol emitiu um comunicado no qual dizia que negar assistência médica aos idosos é inconstitucional:
"em caso de extrema escassez de recursos na área da saúde, pacientes idosos devem ser tratados da mesma maneira que o restante da população, ou seja: segundo critérios clínicos de cada caso em particular. A aceitação daquele tipo de discriminação levaria a uma subestimação de determinadas vidas humanas devido à idade, o que contradiz os fundamentos do nosso Estado de Direito, em particular o reconhecimento da equanimidade da intrínseca dignidade de todo ser humano."
O comunicado do governo não tem força de lei, o que significa que os governos regionais da Espanha não estão expressamente proibidos de acabar com a prática de negar assistência médica aos idosos.
A escassez de recursos na área da saúde tanto na Espanha como na Itália, os dois países europeus mais castigados pela pandemia do coronavírus, pode ser diretamente atribuída a uma década de medidas de austeridade.
Ao longo da crise financeira da Europa em 2011 e 2012, quando muitos bancos italianos e espanhóis estavam à beira do colapso, os países do norte da Europa impuseram rígidas condições orçamentárias em troca de resgate financeiro. Como resultado, os gastos do governo em saúde pública foram drasticamente reduzidos.
Na Espanha, em abril de 2012 o governo revelou medidas de austeridade concebidas para cortar 65 bilhões de euros do déficit público até 2014. Os cortes impostos pelo Banco Central Europeu, reduziram os gastos da Espanha em saúde pública em impressionantes 10%. Mariano Rajoy, então primeiro-ministro espanhol explicou o seguinte: "as medidas não são agradáveis, mas são necessárias. Nossos gastos públicos excedem nossa receita em dezenas de bilhões de euros".
Em novembro de 2019, dois meses antes do surgimento do coronavírus na Espanha, o governo espanhol revelou que quase 700 mil pacientes estavam na lista de espera por cirurgias. Por todo o país, os pacientes tinham que esperar 115 dias em média por uma cirurgia. Na Catalunha os pacientes tinham que esperar cerca de seis meses, em Madri seis semanas.
Um cenário semelhante ocorreu na Itália desde 2012, onde o governo cortou bilhões de euros em gastos com a saúde pública em troca de socorro financeiro da União Europeia.
Muitos economistas disseram que Itália e Espanha jamais deveriam ter aderido ao euro, a moeda única usada por 19 dos 27 Estados-Membros da União Europeia, porque, aderindo, perderiam a soberania monetária: perderam o direito de valorizar ou desvalorizar a moeda e de gerir suas economias frente aos choques econômicos.
A gravidade da crise do coronavírus na Itália e na Espanha, onde pacientes idosos são abandonados à própria sorte em benefício dos jovens, se deve em grande parte às medidas de austeridade associadas à sua participação na zona do euro. O grande número de mortos, em especial entre os idosos, ao que tudo indica, é o preço que italianos e espanhóis estão pagando para fazerem parte de uma união monetária à qual nunca deveriam ter aderido.
Soeren Kern é colaborador sênior do Gatestone Institute sediado em Nova Iorque.