Os que acreditam que Putin está tentando restabelecer a Rússia como grande potência salientam que uma vez conquistado o domínio da Ucrânia, ele dirigirá o foco para outras ex-repúblicas soviéticas, incluindo os países bálticos da Estônia, Letônia e Lituânia e, ao fim e ao cabo Bulgária, Romênia e até a Polônia. (Foto: Mihail Klimentyev/Sputnik/AFP via Getty Images) |
Já se passaram quase três semanas desde que o presidente russo, Vladimir Putin, iniciou a invasão da Ucrânia, não se sabe ao certo o porquê e o que ele espera alcançar. Analistas, comentaristas e autoridades governamentais do Ocidente apareceram com um montão de teorias na tentativa de explicar as ações, motivos e objetivos de Putin.
Alguns analistas postulam que Putin é motivado pelo desejo de reconstruir o Império Russo. Outros dizem que ele está obcecado em trazer a Ucrânia de volta à esfera de influência russa. Já outros acham que Putin quer controlar os enormes recursos energéticos da costa ucraniana. Outros ainda especulam que Putin, autocrata calejado, não quer soltar o osso (do poder) de jeito nenhum.
Enquanto alguns argumentam que Putin dispõe de uma estratégia proativa de longo prazo destinada a estabelecer a primazia russa na Europa, outros acreditam que ele seja um reacionário que pensa no imediato e quer preservar o que resta do encolhimento da Rússia no cenário internacional.
Segue abaixo uma compilação de oito teorias distintas, porém complementares, que tentam explicar porque Putin invadiu a Ucrânia.
1. Construir o Império
A explicação mais comum para a invasão da Ucrânia pela Rússia é que Putin, ressentido até o ultimo fio de cabelo, por conta do fim do Império Soviético, está determinado a restabelecer a Rússia (comumente considerada uma potência regional) como grande potência capaz de exercer influência em escala global.
De acordo com essa teoria, Putin pretende recuperar o controle sobre os 14 estados pós-soviéticos, muitas vezes referidos como o "exterior próximo" da Rússia, que se tornaram independentes após o colapso da União Soviética em 1991. Isto faz parte de um plano maior de reconstruir o Império Russo, que em termos territoriais era mais expansivo ainda que o Império Soviético.
A teoria do Império Russo sustenta que a invasão da Geórgia por Putin em 2008 e da Crimeia em 2014, bem como a intervenção na Síria em 2015, fazem parte da estratégia de restaurar a posição geopolítica da Rússia e corroer as regras da ordem internacional baseadas na liderança dos EUA.
Os que acreditam que Putin está tentando restabelecer a Rússia como grande potência salientam que uma vez conquistado o domínio da Ucrânia, ele dirigirá o foco para outras ex-repúblicas soviéticas, incluindo os países bálticos da Estônia, Letônia e Lituânia e, ao fim e ao cabo Bulgária, Romênia e até a Polônia.
O objetivo final de Putin, dizem eles, é expulsar os Estados Unidos da Europa, estabelecer uma esfera de influência exclusiva de grande potência para a Rússia no continente e dominar a ordem de segurança europeia.
A literatura russa apoia esta visão. Senão vejamos, em 1997, o estrategista russo Aleksandr Dugin, amigo de Putin, publicou um livro bastante influente: "Foundation of Geopolitics: The Geopolitical Future of Russia", onde argumenta que o objetivo de longo prazo da Rússia deveria ser a criação, não de um Império Russo, mas de um Império Eurasiano.
O livro de Dugin, leitura obrigatória nas academias militares russas, afirma que para tornar a Rússia grande novamente, a Geórgia deveria ser desmembrada, a Finlândia anexada e a Ucrânia deixar de existir: "a Ucrânia, como estado independente que abraça certas ambições territoriais, representa um enorme perigo para toda a Eurásia." Dugin, considerado o "Rasputin de Putin", adiantou:
"o Império Eurasiano será construído com base no princípio fundamental do inimigo comum: rejeição do atlantismo, controle estratégico dos EUA e a recusa em permitir que os valores liberais nos dominem."
Em abril de 2005, Putin ecoou este sentimento quando, em seu discurso anual sobre a situação do país, retratou o colapso do império soviético como "a maior catástrofe geopolítica do século XX". Desde então, Putin tem criticado repetidamente a ordem mundial liderada pelos EUA, na qual a Rússia exerce uma posição subordinada.
Em fevereiro de 2007, em um discurso à Conferência de Munique sobre Política de Segurança, Putin atacou a ideia de uma ordem mundial "unipolar" na qual os Estados Unidos, como única superpotência, tivessem condições de disseminar seus valores democráticos liberais para outras partes do planeta, entre elas a Rússia.
Em outubro de 2014, num discurso diante do Valdai Discussion Club, um renomado think tank russo situado perto do Kremlin, Putin criticou a ordem internacional liberal pós-Segunda Guerra Mundial, cujos princípios e normas, incluindo adesão ao Estado de Direito, respeito pelos direitos humanos e promoção da democracia liberal, bem como a preservação da santidade da soberania territorial e das fronteiras existentes, regularam a condução das relações internacionais por quase 80 anos. Putin preconizou a criação de uma nova ordem mundial multipolar mais amigável aos interesses de uma Rússia autocrática.
O já falecido Zbigniew Brzezinski (ex-conselheiro de segurança nacional do presidente Jimmy Carter), escreveu em seu livro de 1997 "The Grand Chessboard", que a Ucrânia é essencial para as ambições imperiais russas:
"sem a Ucrânia, a Rússia deixa de ser um império eurasiano... No entanto, se Moscou recuperar o controle da Ucrânia, cuja população é de 52 milhões de habitantes além de seus gigantescos recursos e acesso ao Mar Negro, a Rússia automaticamente recupera os meios para se tornar um poderoso estado imperial, indo da Europa a Ásia."
O historiador alemão Jan Behrends tuitou o seguinte:
"não se iludam: para #Putin não se trata da UE nem da OTAN, se trata sim de sua missão de restaurar o império russo. Nem mais, nem menos. A #Ucrânia é apenas uma etapa, a OTAN é só uma pedra no sapato. Mas o objetivo final é a hegemonia russa na Europa".
O especialista em Ucrânia Peter Dickinson, observou no Atlantic Council :
"a extrema hostilidade de Putin em relação à Ucrânia é concebida pelos seus instintos imperialistas. Muitas vezes se salienta que Putin quer mesmo é recriar a União Soviética, mas não passa nem perto disso. Na realidade, ele é um imperialista russo que sonha em retomar o Império Czarista e culpa as incipientes autoridades soviéticas de terem entregado terras russas ancestrais para a Ucrânia e outras repúblicas soviéticas."
O conceituado especialista búlgaro Ivan Krastev concorda:
"os Estados Unidos e a Europa não estão divididos quanto às ambições de Putin. Em que pese todas as especulações sobre motivações, uma coisa é certa: o Kremlin quer a ruptura simbólica com os anos de 1990 e enterrar a ordem pós-Guerra Fria. O resultado tomaria a forma de uma nova arquitetura sobre a segurança europeia que reconheceria a esfera de influência da Rússia no espaço pós-soviético e que rejeitasse a universalidade dos valores ocidentais. Mais do que a retomada da União Soviética, o objetivo é a recuperação do que Putin considera a Rússia histórica."
Andrew Michta, analista sobre segurança transatlântica ressaltou que a invasão da Ucrânia foi:
"o crepúsculo de quase duas décadas da política de Putin destinada a reconstruir o império russo e trazer a Rússia de volta à política europeia como um dos principais atores em condições de moldar o futuro do continente."
Ao escrever para o blog de segurança nacional 1945, Michta adiantou:
"do ponto de vista de Moscou, a guerra ucraniana é, na verdade, a batalha final da Guerra Fria, para a Rússia, hora de recuperar seu lugar no tabuleiro de xadrez europeu como um grande império, com poderes de avançar e moldar o destino do continente. O Ocidente precisa entender e aceitar que somente quando a Rússia for inequivocamente derrotada na Ucrânia, haverá ao fim e ao cabo, a possibilidade de se chegar a um genuíno acordo pós-Guerra Fria."
2. Zona Tampão
Inúmeros analistas atribuem a invasão russa da Ucrânia à geopolítica, que tenta explicar o comportamento dos países através das lentes da geografia.
A maior fatia da parte ocidental da Rússia fica na planície russa, vasta região livre de montanhas que se estende por mais de 4 milhões de quilômetros quadrados. Também chamada de Planície Europeia Oriental, a planície apresenta à Rússia um grave problema de segurança: a invasão de um exército inimigo da Europa Central ou Oriental encontraria poucos obstáculos naturais para alcançar o centro nevrálgico russo. Em outras palavras, a Rússia, devido à sua posição geográfica, fica com a defesa para lá de complicada.
Robert Kaplan, veterano analista geopolítico escreveu que a questão geográfica é o ponto de partida para entender tudo sobre a Rússia:
"a Rússia continua despótica e autocrática porque, diferentemente da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, não é uma nação insular, mas um vasto continente com poucas características geográficas para protegê-la de invasões. A agressão de Putin decorre, em última análise, dessa fundamental insegurança geográfica."
Historicamente, os líderes russos têm procurado obter profundidade estratégica se expandindo para criar zonas tampão, barreiras territoriais que aumentam a distância e o tempo que os invasores teriam para chegar até Moscou.
Faziam parte do Império Russo os Bálticos, Finlândia e Polônia, todos servindo de zona tampão. A União Soviética criou o Pacto de Varsóvia que incluía Albânia, Bulgária, Tchecoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia e Romênia, enorme zona tampão para protegê-la de potenciais invasores.
A maioria dos países do Pacto de Varsóvia de outrora são agora membros da OTAN. Isso deixa Bielorrússia, Moldávia e Ucrânia, estrategicamente localizadas entre a Rússia e o Ocidente, como os únicos países do leste europeu servindo de estados-tampão para os russos. Alguns analistas argumentam que a impressão que a Rússia tem da necessidade de uma zona tampão é o principal fator na decisão de Putin de invadir a Ucrânia.
Mark Galeotti, consagrado estudioso britânico da política de poder russa, observou que a posse de uma zona tampão é intrínseca à compreensão da Rússia sobre o status de grande potência:
"do ponto de vista de Putin, ele construiu muito de sua identidade política em torno da noção de tornar a Rússia uma grande potência e fazer com que seja reconhecida como tal. Quando ele pensa em grande potência, ele vira no fundo um geopolítico do século XIX. Não se trata do poder da conectividade econômica, nem da inovação tecnológica, muito menos do poder de influência. Não. O grande poder, no melhor e velho estilo, conta com uma esfera de influência, países cuja soberania encontra-se subordinada à sua."
Outros acreditam que o conceito de estados-tampão é obsoleto. Benjamin Denison, especialista em segurança internacional por exemplo, argumenta que a Rússia não pode legitimamente justificar a necessidade de uma zona tampão:
"após a invenção das armas nucleares... os estados-tampão não eram mais vistos como necessários, independentemente da geografia, pois a dissuasão nuclear funcionou para garantir a integridade territorial das grandes potências que possuíam poder nuclear... A utilidade dos estados-tampão e os temores da questão geográfica invariavelmente mudaram após a revolução nuclear. Sem a preocupação de invasões rápidas de uma grande potência rival, os estados-tampão perdem sua função, independentemente da geografia do território...
"Designar cuidadosamente interesses nacionais à geografia e exigir que a geografia impulsione os estados a replicarem ações passadas, empregadas ao longo da história, só fomenta o pensamento equivocado e de forma leniente tolera a apropriação de terras pela Rússia como se fosse legítimo."
3. Independência Ucraniana
A obsessão de Putin em acabar com a soberania ucraniana está estreitamente entrelaçada com teorias sobre construção de impérios e geopolítica. Putin afirma que a Ucrânia faz parte da Rússia há séculos e que a sua independência em agosto de 1991 foi um erro histórico. A Ucrânia, afirma ele, não tem o direito de existir.
Putin tem repetidamente subestimado ou negado o direito da Ucrânia à condição de estado e de soberania:
Em 2008, Putin disse a William Burns, então embaixador dos EUA na Rússia (hoje diretor da CIA): "você não sabia que a Ucrânia não é nem um país de verdade? Parte dela é na realidade do Leste Europeu e outra parte é na realidade russa."
Em julho de 2021, Putin escreveu um ensaio de 7 mil palavras intitulado "Com Respeito à Unidade Histórica de Russos e Ucranianos", no qual mostrou desprezo pelo estado ucraniano, questionou a legitimidade das fronteiras da Ucrânia e argumentou que a Ucrânia moderna ocupa "as terras da Rússia histórica". E concluiu: tenho plena convicção de que verdadeira soberania da Ucrânia é possível somente com a parceria da Rússia."
Em fevereiro de 2022, apenas três dias antes de iniciar a invasão, Putin afirmou que a Ucrânia era um estado fake criado por Vladimir Lenin, fundador da União Soviética:
"a Ucrânia moderna foi inteiramente criada pela Rússia, mais especificamente pelos bolcheviques, a Rússia comunista. Este processo começou praticamente logo na sequência da revolução de 1917, Lenin e seus parceiros a criaram de maneira extremamente complicada para a Rússia, separando, cortando o que era historicamente território russo... A Ucrânia soviética é o resultado da política dos bolcheviques e poderia ser justificadamente chamada de 'Ucrânia de Vladimir Lenin'. Ele foi seu criador e arquiteto."
No ensaio "A culpa é de Lenin: o que Putin não entende sobre a Ucrânia", o conceituado especialista russo Mark Katz argumenta que Putin deveria se beneficiar da percepção de Lenin de que uma abordagem mais reconciliatória em relação ao nacionalismo ucraniano serviria melhor aos interesses de longo prazo da Rússia:
"não dá para Putin fugir do problema que o próprio Lênin teve que enfrentar de achar um meio de reconciliar os que não são russos serem comandados pela Rússia. A imposição forçada do domínio russo em parte, sem falar em toda a Ucrânia, não trará tal reconciliação. Portanto ainda que os ucranianos não possam resistir à imposição forçada do domínio russo sobre parte ou toda a Ucrânia agora, o sucesso de Putin em impô-lo provavelmente só intensificará os sentimentos de nacionalismo ucraniano provocando novas invasões sempre que a oportunidade surgir."
A independência política da Ucrânia tem sido acompanhada por uma longa contenda com a Rússia sobre fidelidade religiosa. Em janeiro de 2019, ocorreu o que foi retratado como "o maior racha no cristianismo em séculos", a Igreja Ortodoxa da Ucrânia conquistou a independência (autocefalia) da Igreja Russa. A igreja ucraniana se encontrava sob jurisdição do patriarcado de Moscou desde 1686. A autonomia foi um golpe para a igreja russa, que perdeu cerca de um quinto dos 150 milhões de cristãos ortodoxos.
O governo ucraniano alegou que as igrejas apoiadas por Moscou na Ucrânia estavam sendo usadas pelo Kremlin para disseminar propaganda e dar sustentação aos separatistas russos na região leste de Donbas. Putin quer que a igreja ucraniana volte à órbita de Moscou e alertou que haverá "altercações pesadas, até derramamento de sangue" a qualquer tentativa de transferir a posse da propriedade da igreja.
O primaz da Igreja Ortodoxa Russa, Patriarca Kirill de Moscou, declarou que Kiev, berço da religião ortodoxa, é comparável em termos de importância histórica a Jerusalém:
"a Ucrânia não se encontra na periferia da nossa igreja. Nós chamamos Kiev de 'mãe de todas as cidades russas'. Para nós, Kiev é o que Jerusalém é para muitos. A Ortodoxia Russa começou lá, de modo que, em hipótese alguma, podemos abandonar esse relacionamento histórico e espiritual. Toda a unidade da nossa Igreja Local baseia-se nestes laços espirituais".
Em 6 de março, Kirill, ex-agente da KGB, mais conhecido como "coroinha de Putin", por conta da sua subserviência ao líder russo, publicamente endossou a invasão da Ucrânia. Num sermão ele repetiu as alegações de Putin de que o governo ucraniano estava perpetrando um "genocídio" contra os russos na Ucrânia: "Ao longo de oito anos, a repressão e o extermínio estão em andamento em Donbas. Oito anos de sofrimento e o mundo inteiro em silêncio".
Ulrich Speck, analista geopolítico alemão escreveu:
"para Putin, destruir a independência da Ucrânia virou obsessão... Putin disse inúmeras vezes e até escreveu, que a Ucrânia não é uma nação independente e não deveria existir como estado soberano. É esta fundamental negação que levou Putin a travar esta guerra totalmente sem sentido que ele não tem condições de vencer. E isso nos leva ao problema de como fazer a paz: ou a Ucrânia tem o direito de existir como uma nação e estado soberano ou não. A soberania é indivisível. Putin nega tal preceito, a Ucrânia defende. Como chegar a um denominador comum sobre a existência da Ucrânia como estado soberano? Impossível. É por isso que ambos os lados só podem mesmo é lutar até que um vença.
"Normalmente as guerras entre estados têm como pano de fundo conflitos que estes têm entre si. No entanto, esta é uma guerra que trata da existência de um país, negada pelo agressor. É por isso que os velhos conceitos de fazer a paz, achar um meio-termo, não se aplicam aqui. Se a Ucrânia continuar existindo como estado soberano, Putin terá perdido. Ele não está interessado em ganhos territoriais propriamente ditos, o que seria um fardo. Ele está interessado apenas e tão somente em controlar o país por inteiro. O resto é resto, é derrota para ele."
Taras Kuzio, especialista ucraniano salientou:
"A verdadeira causa da crise atual é a busca de Putin de fazer com que a Ucrânia volte à órbita russa. Nos últimos oito anos, ele usou uma mistura de intervenção militar direta, ataques cibernéticos, campanhas de desinformação, pressão econômica e diplomacia coercitiva para tentar e forçar a Ucrânia a abandonar suas ambições euro-atlânticas...
"O objetivo final de Putin é a capitulação da Ucrânia e a absorção do país na esfera da influência russa. Sua busca obsessiva por esse objetivo já mergulhou o mundo em uma nova Guerra Fria...
"Nada menos do que o retorno da Ucrânia à órbita do Kremlin irá satisfazer Putin ou aplacar seus temores sobre o rompimento da herança imperial da Rússia. Ele não irá parar até que seja contido. Para tanto, o Ocidente deverá se tornar muito mais robusto na resposta à agressão imperial russa e concomitantemente apressar a integração euro-atlântica da Ucrânia".
4. OTAN
Esta teoria sustenta que Putin invadiu a Ucrânia com o objetivo de impedi-la de ingressar na OTAN. O presidente russo exigiu inúmeras vezes que o Ocidente garantisse "imediatamente" que a Ucrânia não será autorizada a ingressar na Otan nem na União Europeia.
John Mearsheimer, teórico americano de relações internacionais e eloquente defensor desse ponto de vista, que, no polêmico ensaio: "Why the Ukraine Crisis Is the West's Fault", argumenta que a expansão da OTAN para o leste provocou Putin a agir militarmente contra a Ucrânia:
"Os Estados Unidos e seus aliados europeus dividem o grosso da responsabilidade pela crise. A ponto nevrálgico do problema é o avanço da OTAN, elemento central da abrangente estratégia de tirar a Ucrânia da órbita da Rússia e integrá-la no Ocidente...
"Desde meados dos anos de 1990, os líderes russos se opuseram terminantemente ao crescimento da Otan e nos últimos anos deixaram claro que não ficariam de braços cruzados enquanto seu vizinho estrategicamente importante virasse um bastião ocidental."
Em recente entrevista ao The New Yorker, Mearsheimer culpou os Estados Unidos e seus aliados europeus pelo o conflito atual:
"acho que todos os problemas neste caso começaram, a bem da verdade, em abril de 2008, na Cúpula da Otan em Bucareste, onde na sequência a Otan emitiu um comunicado dizendo que a Ucrânia e a Geórgia se tornariam membros da Otan."
Na realidade, nem sempre Putin se opôs à expansão da OTAN. Em várias ocasiões ele chegou a ponto de dizer que a expansão da OTAN para o leste não era problema da Rússia.
Em março de 2000, por exemplo, em uma entrevista com o já falecido apresentador da BBC David Frost, Putin foi questionado se ele via a OTAN como potencial parceiro, rival ou inimigo. Putin respondeu:
"a Rússia faz parte da cultura europeia. E não consigo imaginar meu próprio país isolado da Europa e do que costumamos chamar de mundo civilizado. De modo que, é difícil para mim visualizar a Otan como inimiga."
Em novembro de 2001, durante uma entrevista à National Public Radio, Putin foi questionado se ele se opunha à admissão dos três estados bálticos, Lituânia, Letônia e Estônia, na OTAN. Ele respondeu:
"é claro que não cabe a nós dizer aos outros o que eles devem ou não fazer. Não temos condições de proibir que pessoas façam certas escolhas se quiserem aumentar a segurança de suas nações de determinada maneira."
Ao ser questionado sobre o futuro das relações da OTAN e a Ucrânia em maio de 2002, Putin, respondeu na lata que ele não estava nem aí para isso:
"tenho plena convicção de que a Ucrânia não irá se intimidar em levar adiante os processos de expansão da interação com a OTAN e com os aliados ocidentais como um todo. A Ucrânia tem suas próprias relações com a OTAN, há o Conselho Ucrânia-OTAN. Em última análise, a decisão deverá ser tomada pela OTAN e pela Ucrânia. É prerrogativa deles."
O posicionamento de Putin sobre a expansão da OTAN deu uma guinada de 180º após a Revolução Laranja de 2004, que foi desencadeada pela tentativa de Moscou de roubar a eleição presidencial da Ucrânia. Uma grande revolta pró-democracia acabou levando à derrota do candidato preferido de Putin, Viktor Yanukovych, que acabou se tornando presidente da Ucrânia em 2010, mas foi deposto na Revolução Euromaidan de 2014.
O ex-secretário-geral da OTAN Anders Fogh Rasmussen, salientou em uma recente entrevista à Radio Free Europe, como as opiniões de Putin sobre a OTAN mudaram:
"Putin mudou ao longo dos anos. Nosso primeiro encontro ocorreu em 2002... ele se mostrou muito positivo quanto à cooperação entre a Rússia e o Ocidente. Posteriormente, ele foi aos poucos mudando de ideia. E por volta de 2005 e 2006, ele foi ficando cada vez mais avesso em relação ao Ocidente. Em 2008 ele atacou a Geórgia... Em 2014 ele tomou a Crimeia e agora vimos uma invasão em grande escala na Ucrânia. De modo que, ele realmente mudou ao longo dos anos.
"Acredito que as revoluções ocorridas na Geórgia e na Ucrânia em 2004 e 2005 contribuíram para a guinada. Não podemos esquecer que Vladimir Putin cresceu na KGB. Assim sendo, sua maneira de pensar foi muito impactada por este passado. Acho que ele sofre de paranoia. Ele imaginou que depois da Revolução Rosa na Geórgia e da Revolução Laranja na Ucrânia, o objetivo (do Ocidente) era iniciar a mudança de regime no Kremlin, em Moscou, também. E é por isso que ele se voltou contra o Ocidente.
"Eu jogo a culpa integralmente em Putin e na Rússia. A Rússia não é a vítima. Estendemos a mão à Rússia inúmeras vezes ao longo da história... Primeiro, aprovamos o Ato Fundador OTAN-Rússia de 1997... Depois em 2002, estendemos a mão mais uma vez, estabelecemos algo muito especial, a saber, o Conselho OTAN-Rússia. E em 2010, decidimos em uma cúpula OTAN-Rússia que desenvolveríamos uma parceria estratégica entre a Rússia e a OTAN. Então, vira e mexe, estendemos a mão para a Rússia."
"Acho que deveríamos ter nos empenhado mais para deter Putin. Em 2008, ele atacou a Geórgia, tomou de fato a Abkhazia e a Ossétia do Sul. Poderíamos ter reagido com muito mais determinação já naquela época."
De uns anos para cá, Putin tem afirmado reiteradamente que o crescimento da OTAN pós-Guerra Fria representa uma ameaça para a Rússia, que não teve outra escolha a não ser se defender. Além disso ele acusou o Ocidente de tentar cercar a Rússia. Na realidade, dos 14 países que fazem fronteira com a Rússia, apenas cinco são membros da OTAN. As fronteiras desses cinco países, Estônia, Letônia, Lituânia, Noruega e Polônia, são contíguas e perfazem somente 5% das fronteiras da Rússia.
Putin afirmou que a Otan quebrou promessas solenes realizadas nos anos de 1990 segundo as quais a aliança não se expandiria para o Oriente. "Vocês nos prometeram na década de 1990 que a OTAN não avançaria um centímetro para o Oriente. Vocês nos mentiram descaradamente", salientou ele em uma entrevista coletiva à imprensa em dezembro de 2021. Mikhail Gorbachev, presidente da União Soviética nos anos 1990, ressaltou que tais promessas jamais foram feitas.
Recentemente Putin fez três exigências totalmente impraticáveis: retirada das forças da OTAN para as fronteiras de 1997, a OTAN não poderá oferecer adesão a outros países, incluindo Finlândia, Suécia, Moldávia nem Geórgia, a OTAN deverá apresentar garantias por escrito de que a Ucrânia jamais se juntará à aliança.
Dmitri Trenin, historiador russo escreveu no ensaio "What Putin Really Wants in Ukraine" para a revista Foreign Affairs, argumentando que Putin quer é que pare a expansão da OTAN, não anexar mais território:
"as ações de Putin sugerem que seu verdadeiro objetivo não é o de conquistar a Ucrânia e absorvê-la na Rússia, mas mudar a configuração pós-Guerra Fria no leste da Europa. Tal configuração deixou a Rússia na condição submissa, em segundo plano, em questões de segurança europeia, que ficou centrada na OTAN. Se ele conseguir manter a OTAN fora da Ucrânia, Geórgia e Moldávia, além dos mísseis de médio alcance dos EUA fora da Europa, ele acha que poderá reparar parte dos danos que a segurança da Rússia sofreu após o fim da Guerra Fria. Não por coincidência, isso poderia servir como um histórico útil a ser usado em 2024, quando Putin se candidatará e possivelmente reeleito."
5. Democracia
Esta teoria sustenta que a Ucrânia, democracia florescente, representa uma ameaça existencial ao modelo autocrático de governança de Putin. A existência continuada de uma Ucrânia soberana, livre e democrática alinhada ao Ocidente poderia inspirar o povo russo a exigir o mesmo.
O ex-embaixador dos EUA na Rússia Michael McFaul e o professor da Academia Militar dos Estados Unidos,Robert Person escreveram que Putin tem pavor da democracia na Ucrânia:
"nos últimos trinta anos, a relevância da questão (expansão da OTAN) subiu e despencou acima de tudo não por conta das ondas expansionistas da OTAN e sim devido as ondas expansionistas democráticas na Eurásia. Num claríssimo padrão, as queixas de Moscou em relação à OTAN dispararam após avanços democráticos...."
"Dado que a principal ameaça a Putin e seu regime autocrático é a democracia, não a OTAN, a sensação de ameaça não desaparecerá como um passe de mágica com uma moratória na expansão da OTAN. Putin não pararia de tentar minar a democracia e a soberania da Ucrânia, Geórgia ou na região como um todo se a OTAN parasse de se expandir. Enquanto os cidadãos dos países livres exercerem seus direitos democráticos de eleger seus próprios líderes e definir seu próprio curso na política interna e externa, Putin ficará de olho neles...
"A causa mais séria das tensões tem sido uma série de avanços democráticos e protestos populares a favor da liberdade ao longo dos anos 2000, o que muitos chamam de 'Revoluções Coloridas'. Putin acredita que os interesses nacionais russos estão ameaçados por conta do que ele pinta como golpes apoiados pelos Estados Unidos. Depois de cada golpe: Sérvia em 2000, Geórgia em 2003, Ucrânia em 2004, Primavera Árabe em 2011, Rússia em 2011/2012 e Ucrânia em 2013/2014, Putin se voltou para políticas mais hostis em relação aos Estados Unidos, invocando a ameaça da OTAN como justificativa..."
"Os ucranianos que se levantaram em defesa da liberdade eram, na avaliação do próprio Putin, irmãos eslavos com estreitos laços históricos, religiosos e culturais com a Rússia. Se isso pode acontecer em Kiev, por que não em Moscou?"
Taras Kuzio, especialista ucraniano concorda:
"Putin continua assombrado pela onda de revoltas pró-democracia que varreu a Europa Oriental no final dos anos de 1980, abrindo caminho para o subsequente colapso soviético. Ele vê a incipiente democracia da Ucrânia como desafio direto ao seu próprio regime autoritário e reconhece que a proximidade histórica da Ucrânia em relação à Rússia torna a ameaça particularmente aguda."
6. Recursos Energéticos
A Ucrânia é detentora da segunda maior reserva, que se tem notícia, mais de um trilhão de metros cúbicos, de gás natural na Europa, atrás somente da Rússia. Essas reservas, no Mar Negro, estão concentradas ao redor da Península da Crimeia. Além disso, enormes depósitos de gás de xisto foram descobertos no leste da Ucrânia, nos arredores de Kharkiv e Donetsk.
Em janeiro de 2013 a Ucrânia assinou um acordo de 50 anos no valor de US$10 bilhões com a Royal Dutch Shell para explorar e perfurar gás natural no leste da Ucrânia. Mais tarde no mesmo ano, Kiev assinou um acordo de produção conjunta de gás de xisto por 50 anos no valor de US$10 bilhões com a Chevron, empresa de produção de energia dos Estados Unidos. Tanto a Shell como a Chevron caíram fora dos acordos depois que a Rússia anexou a Península da Crimeia.
Alguns analistas acreditam que Putin anexou a Crimeia para impedir que a Ucrânia se tornasse um grande fornecedor de petróleo e gás para a Europa, desafiando assim a supremacia energética da Rússia. A Rússia, segundo eles, também estava temerosa de que, na qualidade de segundo maior país produtor de petróleo e gás da Europa, a Ucrânia seria rapidamente aceita na UE e na OTAN.
Segundo esta teoria, a invasão da Ucrânia pela Rússia visa forçar Kiev a reconhecer oficialmente a Crimeia como russa bem como reconhecer as repúblicas separatistas de Donetsk e Lugansk como estados independentes, para que Moscou possa garantir legalmente o controle sobre os recursos naturais naquelas regiões.
7. Recursos Hídricos
Em 24 de fevereiro, no primeiro dia da invasão russa na Ucrânia, tropas russas restauraram o fluxo de água para um canal estrategicamente importante que liga o rio Dnieper à Crimeia ora controlada pelos russos. A Ucrânia bloqueou o Canal da Crimeia do Norte, da era soviética, que fornece 85% das necessidades hídricas da Crimeia, depois que a Rússia anexou a península em 2014. A escassez de água resultou numa massiva redução na produção agrícola na península, forçando a Rússia a gastar bilhões de rublos a cada ano para fornecer água do continente para sustentar a população da Crimeia.
A crise hídrica foi uma importante fonte de tensão entre a Ucrânia e a Rússia. O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky bateu o pé, insistindo que o abastecimento de água seria restabelecido somente depois que a Rússia devolvesse a Península da Crimeia. Polina Vynogradova, analista de segurança observou que qualquer retomada do abastecimento de água equivaleria a um reconhecimento de fato da autoridade russa na Crimeia e minaria a reivindicação da Ucrânia sobre a península. Também reduziria a margem de manobra ucraniana nas negociações sobre Donbas.
Mesmo que, ao fim e ao cabo, as tropas russas se retirem da Ucrânia, a Rússia provavelmente manterá permanentemente o controle sobre o Canal da Crimeia do Norte, de 400 quilômetros, para garantir que não haja mais interrupções no abastecimento de água da Crimeia.
8. Sobrevivência do Regime
Esta teoria sustenta que Putin, de 69 anos, no poder desde 2000, quer um eterno conflito militar como forma de manter o prestígio na população russa. Alguns analistas acreditam que, após revoltas populares na Bielorrússia e no Cazaquistão, Putin decidiu invadir a Ucrânia por medo de perder o poder.
Em entrevista concedida ao Politico, Bill Browder, o empresário americano que dirige a Global Magnitsky Justice Campaign, salientou que Putin sente a necessidade de parecer forte o tempo todo:
"não acho que esta guerra seja por causa da OTAN, não acho que esta guerra seja por causa do povo ucraniano nem da UE nem mesmo da Ucrânia, o âmago desta guerra é para se perpetuar no poder. Putin é um ditador e ele é um ditador cuja intenção é ficar no poder até o fim da vida. Ele disse a si mesmo, que está escrito, a menos que ele faça algo dramático. Putin só está pensando no curto prazo... 'como eu continuo no poder desta para a próxima semana? E da próxima para a próxima?'"
Anders Åslund, um dos mais consagrados especialistas em política econômica sobre a Rússia e a Ucrânia, concorda:
"como entender a guerra de Putin contra a Ucrânia. Não se trata da OTAN, UE, URSS nem mesmo a própria Ucrânia. Putin precisa de uma guerra para justificar seu governo, sua açodada repressão interna... Na realidade, no frigir dos ovos, tudo gira em torno de Putin, não o neoimperialismo, nacionalismo russo nem mesmo a KGB."
A especialista russa Anna Borshchevskaya escreveu que a invasão da Ucrânia pode ser o começo do fim de Putin:
"embora não tenha sido eleito democraticamente, ele se preocupa com a opinião pública e as manifestações em casa, vendo-as como ameaças ao seu poder... Ao passo que Putin pode ter tido a esperança de que invadindo a Ucrânia ele expandiria rapidamente o território russo e ajudaria a restaurar a grandeza do antigo império russo, a invasão poderá sair pela culatra."
Soeren Kern é colaborador sênior do Gatestone Institute sediado em Nova Iorque.