O governo britânico divulgou ambiciosas medidas de contraterrorismo que, se forem aprovadas pelo parlamento, darão ao Reino Unido uns dos "poderes mais fortes do mundo" para combater o terrorismo islâmico.
O governo alega que os novos poderes, que têm como objetivo evitar que jihadistas britânicos lutem no exterior e impedir que voltem, se esse for o caso, são necessários para proteger a Grã-Bretanha.
Grupos defensores de liberdades civis contra-atacam dizendo que as medidas são "draconianas" em seu alcance e representam uma drástica expansão dos poderes de vigilância do governo, poderes prontos para serem usados indevidamente se não forem acompanhados de fortes salvaguardas.
A Lei de Contraterrorismo e Segurança foi apresentada na Câmara dos Comuns (a câmara baixa britânica) pela Secretária do Interior Theresa May em 26 de novembro. A lei está sendo apreciada, em caráter urgente, pelo parlamento e poderá se tornar lei já no início de 2015.
A principal cláusula da nova lei irá autorizar o governo a confiscar os passaportes de suspeitos de terrorismo que estejam viajando para o Iraque, Síria ou outros campos de batalha dos jihadistas.
Conforme o sistema atual, o Secretário do Interior deve autorizar, pessoalmente, o confisco de cada passaporte por meio do Royal Prerogative (poderes especiais que possibilitam que decisões sejam tomadas sem a aprovação ou consulta ao parlamento). Dos mais de 500 jihadistas britânicos, que se têm notícia, que viajaram para o Iraque e para a Síria, apenas 24 tiveram seus passaportes confiscados.
A nova lei concederá à polícia e aos guardas de fronteira a prerrogativa de confiscar os passaportes de suspeitos de terrorismo, em loco, por um período de até 30 dias. Além disso, a polícia terá o poder de confiscar os passaportes de indivíduos viajando dentro do Reino Unido pela primeira vez. Isso assegurará que aqueles que foram impedidos de deixar o país não escapem pela fronteira, onde não há controle, entre a Irlanda do Norte e a República da Irlanda.
A nova legislação também introduzirá a assim chamada Ordem de Exclusão Temporária, que concederá ao Secretário do Interior o poder de impedir que jihadistas suspeitos voltem para a Grã-Bretanha por um período de até dois anos.
Após esse período, esses indivíduos só poderão voltar à Grã-Bretanha sob circunstâncias "controladas", significando que eles serão formalmente questionados pela polícia e terão que informar às autoridades o endereço, atividades e contatos com outros extremistas. Aquele que tentar voltar secretamente para a Grã-Bretanha estará sujeito a uma pena de reclusão de cinco anos.
A nova legislação fortalecerá as assim chamadas Medidas de Investigação e Prevenção ao Terrorismo (TPIM em inglês), que serão usadas para restringir as atividades de suspeitos de terrorismo que não foram condenados.
No sistema atual, suspeitos de terrorismo são efetivamente recolhidos à prisão domiciliar sem acesso à Internet ou telefones. A nova lei dará ao governo o direito de realocar esses indivíduos para outras cidades do país e limitar a distância que eles possam viajar, para impedir que se encontrem com outros extremistas.
A lei proposta pela Secretária do Interior do Reino Unido Theresa May (à esquerda) atingirá suspeitos de terrorismo por meio de medidas como confiscar passaportes, negar o uso da Internet e de telefones, restringir viagens internas e realocação forçada. (imagem: Ministério do Interior do Reino Unido) |
Além disso, as companhias de seguro serão proibidas de reembolsar os pagamentos dos custos de resgate de terroristas. Acredita-se que no ano passado, o Estado Islâmico (EI) recebeu pelo menos 28 milhões de libras esterlinas (€36 milhões, US$45 milhões) de pagamentos de resgate, inclusive de governos europeus.
A nova lei obrigará os provedores de serviços da Internet (ISPs) e operadoras de telefonia móvel, a armazenarem informações sobre indivíduos que usarem um determinado endereço de IP de protocolo da Internet (uma marca numérica designada a cada dispositivo conectado à Internet) e, enviá-los às autoridades conforme requisitado. Isso possibilitará que a polícia compare endereços específicos de IP com computadores pessoais e rastrear o uso da Internet desses indivíduos até os últimos 12 meses.
Finalmente, instituições públicas, incluindo escolas, universidades e prisões, terão a obrigação legal de impedir que indivíduos se radicalizem. Escolas e universidades serão obrigadas a apresentar minutas de suas políticas sobre palestras de extremistas nos campi e prisões terão que redigir diretivas para lidarem com radicais. O Ministério do Interior será autorizado a emitir ordens judiciais obrigando essas instituições a proibirem extremistas de discursarem em suas unidades.
Antecipando-se à publicação da lei, May declarou:
"Estamos no meio de uma batalha geracional contra uma ideologia terrorista mortal. Essas prerrogativas são essenciais para acompanhar as graves ameaças e em constante transformação que estamos enfrentando.
"Em uma sociedade livre e aberta, nós nunca poderemos eliminar completamente a ameaça do terrorismo. Contudo, devemos fazer o máximo, de acordo com nossos valores comuns, a fim de reduzir os riscos ministrados pelos nossos inimigos.
"Essa lei inclui um conjunto de propostas, muito bem avaliadas, direcionadas, que ajudarão a nos manter seguros em uma época de perigos realmente consideráveis, assegurando que tenhamos as prerrogativas necessárias para que possamos nos defender".
David Anderson QC, revisor independente oficial da legislação sobre o terrorismo britânico, criticou o governo por não "levar em consideração todos os aspectos " das diversas propostas da nova lei. Ele disse estar especialmente preocupado com a falta de verificação judicial quanto ao uso da Ordem de Exclusão Temporária, que pode durar até dois anos.
Discursando perante o Comitê Misto do Parlamento sobre Direitos Humanos em 26 de novembro, Anderson alertou:
"A preocupação que eu tenho em relação a todo esse poder e a preocupação central em relação a ele é a seguinte: qual o papel das cortes em tudo isso?
"É necessário verificar, com muito cuidado, e ver se estamos diante de um poder que requer a intervenção da corte, em algum estágio, ou se é simplesmente algo que o secretário do interior impõe".
Anderson também levantou preocupação quanto à necessidade de programas que eliminem a radicalização de forma compulsória, acrescentando que a proposta do governo de forçar as universidades a proibirem palestras de extremistas infringirá a liberdade acadêmica.
Realmente, na assim chamada Avaliação de Impacto, o governo admitiu que "partes da legislação podem ser vistas como restrição à liberdade de expressão".
O grupo de direitos humanos Liberty também disse que a proposta do governo apresenta uma ameaça às liberdades civis. Em uma declaração, o grupo advertiu:
"Quando a Coalizão chegou ao poder ela se imbuiu na linguagem das liberdades civis. Com essa lei o governo anula seu incipiente compromisso de assegurar que não abandonaremos nossos valores na luta contra o terrorismo.
"Ao confrontar uma ideologia cruel que promove a violência arbitrária, a submissão das mulheres e a tirania, esperamos que o líderes políticos promovam, de forma robusta e ativa, os valores democráticos como o estado de direito, direitos humanos e direitos iguais para todos. Mas não, a lei faz o jogo dos terroristas ao permitir que eles moldem nossas leis, de maneira a minar nossos princípios.
"Ordens de exclusão, proibição de voar e confisco de passaportes não irão neutralizar a ameaça do terrorismo organizado que não respeita fronteiras internacionais. Poderes de polícia ad-hoc e sistemas cada vez mais restritivos de ordens civis irão apenas desviar a atenção das prisões e dos processos. Emaranhar nossos professores em policiamento de terroristas irá alienar e marginalizar, enquanto que mais poderes para monitorar as comunicações on-line nos transformará em uma nação de suspeitos.
"As agências por natureza sempre irão querer mais poderes, preocupadas que estão com um programa preventivo de curto prazo, não apropriado ao objetivo de longo prazo, vital para impedir a radicalização, processos e condenação de terroristas. É dever do governo e dos parlamentares, encarregados em protegerem a longo prazo a segurança nacional, de apurarem sua abordagem e limitarem rigidamente os poderes disponíveis".
A Anistia Internacional classificou os poderes de "draconianos" e advertiu sobre os perigos de "se precipitar nesse saco de surpresas de medidas sem o devido escrutínio ou contestação". Em uma declaração, o grupo afirmou:
"Embora o governo necessite assegurar que qualquer um suspeito de atividade criminosa seja investigado, medidas como invalidar passaportes e excluir britânicos natos de sua terra natal, força as fronteiras da lei internacional.
"O exílio interno da realocação forçada, do já injusto regime das TPIMs, é mais uma medida que causa considerável preocupação em relação às liberdades fundamentais. Nós simplesmente não temos os processos justos e adequados em vigor para decisões tão drásticas.
"Enquanto isso, as medidas de vigilância se antecipam às revelações não de uma, mas de três análises oficiais que estão prestes a fazerem recomendações. Análise cuidadosa e detalhada é necessária, não tramitação rápida e grandiloquente".
May continua, sem se deixar desanimar pela crítica, e vem repetindo que além da nova Lei de Contraterrorismo e Segurança, o governo também precisa de uma nova de Lei de Dados de Comunicações para se imbuir de mais poderes abrangentes para o monitoramento da Internet.
Apoiando a posição do governo, um tribunal britânico decidiu, em 5 de dezembro, que práticas para colher informações para a inteligência usadas pelo Centro de Comunicações do Governo (GCHQ em inglês), agência de inteligência britânica que trabalha em estreita colaboração com a Agência de Segurança Nacional dos EUA (NSA em inglês), "seguem as leis e respeitam os direitos humanos".
Os cinco juízes do Investigatory Powers Tribunal rejeitaram os argumentos apresentados pelos defensores da privacidade, que estavam reagindo às revelações do analista da inteligência dos EUA Edward Snowden sobre a ampla coleta de dados realizada pelas agências de espionagem britânicas e americanas.
Na sentença a corte declarou:
"As revelações de Snowden", em particular, deixaram a impressão ventilada em determinados lugares que a lei, de alguma maneira, dá carte blanche aos Serviços de Inteligência, para que eles façam o que bem entenderem. Estamos satisfeitos que esse não é o caso".
A corte acrescentou que os métodos usados devem ser vistos no contexto de proteger a segurança nacional, em uma época em que a ameaça terrorista contra a Grã-Bretanha foi elevada para "grave", significando que um ataque é altamente provável.
Defensores da privacidade, incluindo o Liberty, Privacy International, the American Civil Liberties Union e outros insistem que as práticas do GCHQ violam a Convenção Européia dos Direitos Humanos. Eles dizem que vão apelar da sentença para a Corte Européia dos Direitos Humanos com sede em Strasburg.