A Espanha conta hoje com uma das menores comunidades judaicas da UE. Menos de 50 mil judeus residem atualmente na Espanha, uma minúscula fração do número de judeus que residiam no país antes de 1492, quando os judeus foram forçados a se converterem ao catolicismo ou deixarem o país. Foto: Sinagoga "El Transito" em Toledo, Espanha, fundada em 1357. Quando os judeus foram expulsos em 1492, o Rei Ferdinand e a Rainha Isabella deram a construção para a Igreja. (Imagem: Selbymay/Wikimedia Commons) |
Uma legislação muito elogiada com o objetivo de conceder a cidadania espanhola a possíveis 3,5 milhões de descendentes de judeus expulsos do país em 1492 está prestes a dar com os burros n'água: menos de 10 mil judeus receberam passaportes espanhóis, o prazo termina em 1º de outubro de 2019.
Autoridades espanholas asseguraram que a lei, que entrou em vigor em 1º de outubro de 2015, com vigência de três anos, foi prorrogada por mais um ano, irá reparar uma injustiça histórica e demonstrar que mais de 500 anos após o início da Inquisição, os judeus são mais uma vez bem-vindos à Espanha.
No entanto, a legislação contém tantas barreiras quase intransponíveis para a obtenção da cidadania espanhola que a maioria dos promissores candidatos, ao que parece, são barrados antes mesmo da fase inicial.
Também conhecido como "Direito de Retorno" para os judeus sefarditas (sefardi significa Espanha em hebraico), a lei tinha como objetivo conceder a cidadania espanhola a qualquer um que atendesse dois requisitos aparentemente singelos: provar a origem sefardita e demonstrar uma "ligação especial" com a Espanha
Na prática, os trâmites são bem mais complicados. As principais barreiras impostas pela legislação para a obtenção da cidadania espanhola são a obrigatoriedade de passar nos exames de língua espanhola e de sua história sócio-cultural, a necessidade de visitar a Espanha a custos e tarifas exorbitantes.
Embora não haja a necessidade dos candidatos em potencial serem judeus praticantes, eles precisam provar o background sefardita por meio de uma conjugação de fatores como: origem, sobrenome e fluência no idioma (Ladino, idioma judaico derivado do espanhol medieval ou a Haquetía, uma mistura de hebraico, espanhol e árabe judaico-marroquino).
De acordo com a lei, mesmo que os candidatos falem ladino ou a Haketia, basicamente línguas mortas faladas principalmente pelos idosos em algumas regiões da América Latina, Marrocos e Turquia, eles ainda assim são obrigados a passar em um exame de proficiência em língua espanhola.
Em uma entrevista concedida ao jornal espanhol El País, a diretora do Centro Sefardita em Istambul, Karen Gerson Şarhon, salientou o paradoxo: embora os judeus sefarditas tenham preservado o ladino ou a Haketia por centenas de anos, a proficiência nesses idiomas por si só não os torna elegíveis para a cidadania espanhola. "Um judeu sefardita que fala ladino entende perfeitamente o espanhol falado", ressaltou ela, "mas não passa no exame porque as diferenças entre o espanhol escrito e o oral são gritantes".
Gerson Şarhon destacou que dois terços dos judeus sefarditas que vivem em Istambul, cerca de 15 mil, optaram pela cidadania portuguesa porque Portugal, diferentemente da Espanha, não exige aprovação em exames de idioma para que descendentes de judeus sefarditas possam ser naturalizados.
No cômputo geral, menos de 400 judeus obtiveram a cidadania espanhola nos dois primeiros anos da vigência da lei. Temendo um impacto nas relações públicas, o governo subsequentemente aprovou um decreto isentando dos exames de língua espanhola aos candidatos acima de 70 anos.
Além do exame do idioma espanhol, a lei exige que os candidatos viajem para a Espanha para que a documentação seja verificada por um Tabelião (Notario) antes de todos os documentos serem enviados ao Ministério da Justiça da Espanha.
Vários candidatos revelaram ao Gatestone Institute a incrível perda de tempo e o enorme custo necessários para a finalização do procedimento, tudo isso sem a menor garantia de aprovação. Uma candidata dos Estados Unidos relatou:
"Iniciei o processo há vários meses. Tenho a sorte de poder pagar tudo isso, é triste que outros possam ser dissuadidos devido ao custo. No meu caso as maiores despesas foram as seguintes:
- Prestar os exames no Instituto Cervantes — há poucos locais e os exames de idioma e cultura são prestados em datas diferentes, necessitando portanto de duas viagens ao Instituto Cervantes.
- A ida a um tabelião na Espanha. Se a firma de todos os documentos já foi reconhecida em cartório e se eles tiverem o certificado da Apostila nos Estados Unidos, para que a ida à Espanha?
"Isso pode levar um ano e sem nenhuma garantia. Se eles querem que se vá para a Espanha (o que parece desnecessário), por que não empreender a viagem no final do processo para as devidas assinaturas? Difícil imaginar o quão frustrante é perder todo esse tempo e gastar todo esse dinheiro (US$5 mil a US$6 mil) e não dar em nada."
"Uma das coisas que mais me decepcionou foi a maneira com que os advogados se aproveitam dos interessados em obter a cidadania espanhola. Alguns candidatos me disseram que pagaram US$3 mil, outros US$5 mil. Há um advogado sendo recomendado por diversas organizações nos Estados Unidos, ao que me consta ele cobra de US$1.400 a US$1.800. Aparentemente ele ajudou na aprovação da lei. Se ele realmente se importasse, não cobraria tanto. O trabalho pesado se resume em juntar os documentos, o que o candidato já faz. Ontem eu conheci alguém que pagou só 400 euros (US$450) — essa quantia me parece bem mais realista. Talvez a Federação das Comunidades Judaicas da Espanha (FCJE) ou outra entidade espanhola que realmente se interessa em ajudar, pudesse dispor de serviços para auxiliar os candidatos."
Ela também citou o que é necessário para entrar com os papéis para requerer a cidadania espanhola:
"Nada de mais:
- Prova de origem sefárdica, juntamente com uma carta da FCJE (esse é o item mais fácil!);
- Cópia com firma reconhecida da certidão de nascimento do meu pai de Tetouan, Marrocos;
- Certificado do diploma que fui aprovada no teste de proficiência no idioma espanhol (tive que ir a Chicago por causa desse documento porque ele é emitido somente pelo Instituto Cervantes que tem sucursais em pouquíssimas localidades nos Estados Unidos representando o Ministério da Educação da Espanha);
- Certificado comprovando a pontuação segundo a nota de corte no exame de conhecimento constitucional e sociocultural da Espanha, também emitido pelo Instituto Cervantes (o que requer outra viagem para Chicago);
- Certidão de nascimento (com firma reconhecida, certificado da Apostila* e traduzida**);
- Certidão de Antecedentes Criminais do FBI (com firma reconhecida, certificado da Apostila e traduzida);
- Certidão de Antecedentes Criminais do FBI do Estado de Minnesota (com firma reconhecida, certificado da Apostila e traduzida);
"Provas de uma ligação especial com a Espanha. Entre elas:
- Cópia de um documento de identidade espanhol do meu pai;
- Carta da Universidade de Madri confirmando que meu pai estudou, lecionou ou obteve seu Ph.D na instituição;
- Carta do BBVA Compass, um banco espanhol, comprovando que eu tenho uma conta bancária na Espanha (com firma reconhecida, certificado da Apostila e traduzida);
- Carta comprovando doações a uma organização que fomente programas que perpetuem a história e os ideais sefarditas, suas tradições culturais e religiosas (com firma reconhecida, certificado da Apostila e traduzida);
- Histórico universitário comprovando que eu estudei a língua espanhola (com firma reconhecida, certificado da Apostila e traduzida)."
*Certificado da Apostila é uma certificação internacional assinada pelo Secretário de Estado.
**Todas as traduções tinham que ser feitas por um tradutor juramentado reconhecido pelo Ministério das Relações Exteriores da Espanha."Além disso a obrigação de contratar um advogado e a ida à Espanha me apresentar em um tabelião (o que não garante a obtenção da cidadania espanhola)."
"Moleza."
Muito embora os dados oficiais sobre o número de judeus sefarditas que obterão a cidadania espanhola de acordo com a lei de 2015 não estarão disponíveis até que todos os pedidos sejam processados — o que poderá levar vários anos após a data-limite de entrada dos pedidos marcada para 1º de outubro de 2019 — cálculos iniciais apontam que a lei não "repara o erro."
Até o final de 2018, somente 3.843 judeus sefarditas obtiveram a cidadania espanhola conforme a lei, de acordo com dados publicados pelo El País. Cerca de 70% (2.590) são da América Latina (Venezuela, Colômbia e México). Outros 5.682 pedidos estão na fila para conclusão — o índice de aprovação estimado pelo Gatestone Institute gira em torno de 50%.
O El País observou que embora 8.365 candidatos tivessem obtido a cidadania espanhola desde 2015, na maioria dos casos foi por meio de decretos posteriores promulgados em outubro de 2015 (4.302) e agosto de 2016 (220), para visualizar clique (aqui e aqui), que retiraram alguns obstáculos burocráticos aos judeus que entraram com os pedidos antes da lei atual entrar em vigor.
Em outras palavras, não mais de 5.000 judeus sefarditas teriam obtido a cidadania conforme a lei de 2015 — ou seja: 1% dos 500 mil que o governo espanhol adiantou iriam se beneficiar da lei e 0,15% dos estimados 3,5 milhões de judeus sefarditas espalhados pelo mundo.
Discursando perante o parlamento espanhol em junho de 2015, o então Ministro da Justiça da Espanha Rafael Catalá declarou solenemente:
"Hoje aprovamos a lei que reabre as portas a todos os descendentes dos que foram injustamente expulsos. Essa lei diz muito sobre o que fomos no passado, o que somos hoje e o que queremos ser no futuro: uma Espanha aberta, cheia de diversidade e tolerante."
Mas na prática, não é bem assim. Jon Iñarritu García, congressista que representa o País Basco, discorda da retórica de autoelogios do governo.
"Queremos manifestar nossa insatisfação em relação a essa lei, que tinha como objetivo restaurar a justiça e que ficou cada vez mais complicada. Se observarmos os procedimentos, pré-requisitos, o número de documentos exigidos, as traduções juramentadas, taxas, exames de idioma e cultura e a necessidade de viajar para a Espanha, só nos resta, perplexos, perguntarmos a nós mesmos quais seriam as razões para todos esses obstáculos."
"Se essa lei tinha o objetivo de reparar a injustiça das expulsões e dos abusos, o mais lógico seria evitar um procedimento tão oneroso para os candidatos. Se calcularmos o quanto cada um dos candidatos terá que desembolsar do começo ao fim do processo, chegaremos a um valor entre €4.000 (US$4.500) e €6.000 US ($6.700)."
"Por que os candidatos não podem efetuar os procedimentos necessários nos consulados da Espanha? E qual a razão da firma reconhecida? Por qual razão a lei é válida por apenas três anos, prorrogável por mais um? Por que o prazo da lei não é por tempo indeterminado já que ela foi elaborada para reparar uma injustiça? Não imponham prazos!"
"Por que os exames para verificar o conhecimento sobre o país e o idioma? Por qual razão a lei não concede um papel mais abrangente para a Federação das Comunidades Judaicas da Espanha, que representa as comunidades judaicas perante as autoridades competentes dentro do governo?"
"Todos esses fatos nos levam a concluir que o governo tem a clara intenção de fazer com que o mínimo de candidatos se apresente. E o filtro econômico assegura que somente aqueles com alto poder aquisitivo tenham condições de se candidatar."
"Paralelamente, dada a complicação tanto de viajar quanto de prestar exames, apenas jovens poderão se candidatar. Conforme o provérbio judaico: 'para o idoso qualquer montinho é uma montanha.' "
"Vocês sabem que será muito difícil para o idoso superar essas complicações e obstáculos. No ano passado depois que contei a um membro da comunidade judaica sefardita no norte do País Basco a respeito da ideia da nova lei, ele respondeu não acreditar que ela irá vingar, mas ainda que vingasse, os candidatos dificilmente teriam acesso à nacionalidade espanhola. Ele me disse que é mais fácil ganhar o Prêmio Nobel do que obter a nacionalidade espanhola."
"Considerando todos esses fatores nós acreditamos que essa lei não repara a injustiça A lei é mais uma espécie de símbolo, o primeiro passo, mas não uma lei que irá satisfazer a maioria dos sefarditas que gostaria de obter a nacionalidade espanhola".
Jordi Jané i Guasch, congressista que representa a Catalunha, também manifestou sua frustração em relação à lei:
"A lei apresenta sérios problemas por se tratar de uma corrida com obstáculos. Estamos elaborando procedimentos extremamente complicados para os candidatos que procuram credenciamento, além dos custos envolvidos, ainda assim podem não obter a cidadania. Sejamos honestos... não fizemos as coisas direito... há testes demais, requisitos demais, exames demais."
A Espanha conta hoje com uma das menores comunidades judaicas da União Europeia. Menos de 50 mil judeus residem atualmente na Espanha de acordo com a FCJE. É uma minúscula fração do número de judeus que residiam no país antes de 1492, quando os judeus foram forçados a se converterem ao catolicismo ou deixarem o país.
O Édito de Expulsão foi emitido em 31 de março de 1492 pelos Reis Católicos da Espanha (Isabella I de Castela e Ferdinand II de Aragon). Também conhecido como Decreto de Alhambra, o édito ordenou que os judeus deixassem os Reinos de Castela e Aragon até 31 de julho daquele ano.
O número de judeus atingidos pelo Édito é motivo de controvérsia devido à falta de dados confiáveis. O historiador jesuíta Juan de Mariana (1536-1624), em sua grandiosa obra Historiae de rebus Hispaniae, (história da Espanha desde os primórdios), estima que o número seja 170 mil famílias ou seja 800 mil judeus. Já estudiosos mais modernos acreditam que o número gire em torno de 200 mil a 300 mil.
De acordo com o clássico da história de J.H. Elliott, "Imperial Spain: 1469-1716," acredita-se que cerca de 200 mil judeus viviam na Espanha (150 mil na região de Castela e 50 mil em Aragon) quando do Édito e que entre 120 mil e 150 mil judeus fugiram do país.
Em seu livro "The Jews of Spain: A History of the Sephardic Experience," Jane S. Gerber estima que 175 mil judeus deixaram o país por causa do Édito e outros 100 mil se converteram ao catolicismo.
No clássico "The Origins of the Inquisition in Fifteenth Century Spain," Benzion Netanyahu escreve que "o número de judeus que viviam na Espanha na época da Expulsão era de aproximadamente 225 mil" e que entre 200 mil e 230 mil judeus se converteram ao catolicismo entre 1391 e 1392, quando o vandalismo contra os judeus começou em Sevilha — vandalismo este que semeou a Inquisição.
Soeren Kern é Membro Sênior do Gatestone Institute em Nova Iorque.