Na Europa, onde a pandemia matou mais de 100 mil pessoas e causou uma devastação econômica, líderes políticos mantêm um silêncio ensurdecedor quanto à exigência da China prestar contas. Foto: encontro do Presidente da França Emmanuel Macron (centro) e a Chanceler da Alemanha Angela Merkel (direita) com o Presidente da China President Xi Jinping em Paris em 26 de março de 2019. (Foto: Ludovic Marin/AFP via Getty Images) |
A Austrália e os Estados Unidos estão liderando uma campanha para que seja adotada uma investigação independente sobre as origens da pandemia do coronavírus. Altas autoridades dos dois países querem esclarecer se o vírus se originou na natureza ou em um laboratório chinês. Eles também estão pedindo ao governo chinês que explique como lidou quando do início do surto na cidade de Wuhan.
Na Europa, onde a pandemia matou mais de 100 mil pessoas e causou uma devastação econômica numa escala jamais vista desde a Segunda Guerra Mundial, líderes políticos mantêm um silêncio ensurdecedor quanto à exigência da China prestar contas. Embora algumas autoridades europeias tenham concordado em princípio de que em algum momento no futuro deveria haver investigação, a maioria parece temer na base em desafiar a China abertamente.
A evasiva dos líderes europeus é um reflexo não só da fraqueza geopolítica da Europa e da extraordinária dependência econômica da China, mas também de um vácuo moral no qual eles se recusam a defender os valores ocidentais.
Dias depois das autoridades europeias se curvarem à pressão da China e moderarem os termos de um relatório da UE sobre a investida chinesa de se distanciar da culpa quanto à pandemia do coronavírus, o embaixador da UE na China, Nicolas Chapuis, deu sinal verde para que o governo chinês adaptasse um artigo opinativo assinado por ele e pelos 27 embaixadores dos Estados Membros da UE, para marcar o 45º aniversário das relações diplomáticas com a China.
A UE autorizou o Ministério das Relações Exteriores da China a remover do artigo referências a respeito das origens e disseminação do coronavírus, publicado no China Daily, um diário em inglês de propriedade do Partido Comunista da China.
Um porta-voz da UE salientou que a UE permitiu que a China revisasse o artigo opinativo porque Bruxelas "considerava importante comunicar as prioridades políticas da UE, principalmente sobre mudanças climáticas e sustentabilidade..."
Enquanto isso, a presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen apoiou pedidos para que fosse realizada uma investigação sobre a origem do coronavírus, mas ela evitou mencionar a China e teve o cuidado de não entrar em detalhes, como por exemplo quem deveria conduzir a investigação ou quando ela deveria ser realizada.
Em uma entrevista concedida em 1º de maio à rede americana CNBC, von der Leyen fez uso de "diplomatês" sem pé nem cabeça, ao que tudo indica, para não ofender a China:
"nunca se sabe quando o próximo vírus irá aparecer, portanto o que todos nós queremos da próxima vez, aprendemos a lição e criamos um sistema de alerta antecipado que realmente funciona e o mundo inteiro deve contribuir para isso".
Na Suécia, a Ministra da Saúde Lena Hallengren foi um pouco mais enfática. Em resposta ao parlamento em 29 de abril, ela conclamou a União Europeia para que investigasse a origem da pandemia:
"Quando a situação global do Covid-19 estiver sob controle, é razoável e importante conduzir uma investigação internacional independente para que se possa saber a origem e como se deu a disseminação do coronavírus."
"Também é importante que seja investigada a gestão de toda a comunidade internacional em relação à pandemia do Covid-19, incluindo a Organização Mundial da Saúde. A Suécia tem a honra de levantar essa questão no âmbito da cooperação da UE."
Na França, o Presidente Emmanuel Macron questionou a gestão da China com respeito ao surto do coronavírus. "Dadas as escolhas feitas e o que a China é hoje, o que eu respeito, não sejamos tão ingênuos a ponto de dizer que as coisas foram lidadas com presteza", ressaltou Macron ao Financial Times em 16 de abril. "Nós não sabemos. Obviamente aconteceram coisas sobre as quais não temos conhecimento". Mas nada de propor uma investigação.
Enquanto isso, o governo francês consentiu que a empresa chinesa de telecomunicações Huawei fornecesse componentes para sua rede de telefonia móvel de última geração 5G. A concessão foi feita depois que a China ameaçou retaliar contra empresas europeias estabelecidas no mercado chinês.
Na Grã-Bretanha, que já conta com o maior número de mortes por coronavírus da Europa, o Primeiro Ministro Boris Johnson está estranhamente calado em relação à China. Ele continua resistindo à pressão do parlamento para voltar atrás de sua controversa decisão de aceitar que a Huawei forneça componentes para a rede de telefonia móvel 5G do Reino Unido.
O Ministro das Relações Exteriores Dominic Raab prometeu "questionar duramente" e ameaçou jogar uma pá de cal na ideia de "voltar tudo ao normal" em relação a Pequim. No entanto, ele não anunciou nenhuma medida punitiva contra a China.
Ao ser questionado pela rádio LBC se a China deveria ser responsabilizada, o Secretário de Defesa Ben Wallace, respondeu:
"eu acho que sim. Mas também acho que a hora para o post-mortem deveria acontecer depois que todos nós tivermos o coronavírus sob controle, o deixado para trás e para quando tivermos nossas economias funcionando normalmente. Só sendo abertos e transparentes é que iremos aprender e a China precisa ser aberta e transparente em relação ao o que aprendeu e sobre seus tropeços, mas também sobre seus sucessos".
Em um artigo publicado em 6 de maio, a ex-primeira-ministra Theresa May publicou um artigo opinativo no The Times, urgindo equivalência moral ao lidar com os Estados Unidos e a China. "Um mundo no qual alguns 'homens fortes' se confrontam e esperam que os demais escolham um lado é deveras perigoso", realçou ela, aparentemente se referindo ao presidente dos EUA Donald J. Trump e ao presidente chinês Xi Jinping.
Escrevendo no The Spectator, o analista político escocês Stephen Daisley lamentou a abordagem reticente do governo em relação à China. No ensaio, "Our Toothless Response to China is Embarrassing", ele enumera uma série de medidas que o governo britânico poderia adotar:
"Nenhum país com um mínimo de dignidade pode aceitar que esse tipo de comportamento fique impune. Eu já sugeri algumas medidas punitivas destinadas a ferir o orgulho do regime sem prejudicar o povo chinês: cancelar o acordo com a Huawei, aprovar uma lei no melhor estilo Magnitsky visando altas autoridades do PCC, defender os uigures sempre que surgir alguma oportunidade (por exemplo: dar o nome da rua que abriga a embaixada chinesa em Londres em homenagem a um prisioneiro político uigur) e reconhecer Taiwan como nação independente. Eu só quero dizer, após longa reflexão, o seguinte: conceda a cidadania britânica aos residentes de Hong Kong nascidos antes de 1º de julho de 1997, seus filhos e netos. Ainda que somente uma fração dos residentes de Hong Kong possa aproveitar essa oportunidade, cada um desses residentes seria uma pequena humilhação para a ditadura chinesa. Dada a abordagem extremamente complacente do governo, provavelmente não deveríamos esperar nada além do cancelamento do contrato com a Huawei e até isso está longe de ser algo com que se possa contar. Mesmo sem o bom senso ministerial de impor sanções a Pequim, terá que haver alguma forma de reavaliação estratégica quanto ao nosso relacionamento com a República Popular. Se é assim que a China se comporta em uma ordem mundial liderada pelos EUA, é improvável que ela seja mais benevolente como superpotência rival (ou substituta)."
"Em que pese abandonar o livre comércio global e a interdependência econômica poderá provar ser um tropeço e tanto, seria igualmente insensato permanecer deficitário frente a um regime que, na mais benevolente leitura dos acontecimentos, causou a morte de milhares de vidas britânicas que poderiam ter sido evitadas, só para salvar as aparências. No entanto, trazer de volta ao país e reconstruir os principais setores manufatureiros é apenas parte da solução. Necessitamos do comércio, contudo, as nossas prioridades comerciais estão sujeitas a considerações políticas e de segurança. A China é nosso segundo maior parceiro comercial, enquanto a Índia é o sexto. Seria de interesse do Reino Unido inverter isso. É claro que, para fazer uma mudança dessas, é necessário um governo com um tanto de firmeza e audácia e não está claro se é o nosso caso."
Na Alemanha, o Ministro do Desenvolvimento Gerd Müller ressaltou que o governo chinês "tinha que mostrar total abertura nesta crise mundial, especialmente no que diz respeito à origem do vírus". A declaração foi a mais enfática proferida por qualquer membro do gabinete alemão até hoje. A Chanceler Angela Merkel se distanciou do comentário, assinalando que a matéria não tinha sido discutida pelo gabinete:
"acredito que quanto mais a China for transparente em relação à história do vírus, melhor será para todos ao redor do mundo que querem ampliar o conhecimento. Mas não discutimos isso especificamente".
O comentarista alemão Constantin Eckner observou que o coronavírus expôs a dependência da Alemanha em suas relações comerciais com a China e que a Alemanha precisa superar a crise atual:
"Há anos a Alemanha depende da China tanto para a compra de suprimentos a preços competitivos quanto para o mercado de suas exportações. Após a crise financeira de 2008, quando a maior parte da Europa passava por poucas e boas, a Alemanha se manteve incólume graças a uma forte economia orientada para a exportação e, em parte, graças à China. A Alemanha não se preocupou com os avanços geoeconômicos de Pequim. Não deu a mínima para o fórum 16+1 que os países da Europa Central e Oriental lançaram em 2012 nem com a Iniciativa Belt and Road inaugurada em 2013 e nem com a estratégia 'Made in China 2025' destinada a estabelecer o domínio chinês nas tecnologias emergentes..."
"Aos olhos do povo, Berlim se posicionou contra a 'diplomacia da máscara' de Xi Jinping desde o início do surto do coronavírus na Europa, condenando as investidas de explorar a crise política e economicamente. Mas, nos bastidores, a cúpula do governo reconhece que a economia interna precisa da China exatamente como precisava dela na esteira de 2008, provavelmente até mais. A Alemanha tem o maior índice de exportação do G20, cerca de 47% de PIB do país. Uma queda vertiginosa na demanda de proporções globais põe muitos fabricantes em uma situação extremamente complicada. Visto que a China está se recuperando da pandemia mais depressa que o restante do planeta, a Alemanha poderá acabar se acorrentando ainda mais ao gigante econômico do que antes da crise..."
"Esse período de desespero poderá urgir Merkel a forjar uma nova aliança com Xi, reconhecendo assim que a Alemanha não tem como sobreviver sem o mercado chinês e sem o seu poder financeiro, mas também sabendo que Pequim não hesitará em explorar essa dependência para promover seus objetivos geoeconômicos. Pelo futuro da prosperidade, a Alemanha poderá ser forçada a olhar para o Oriente".
A atitude mais veemente da Europa contra a China veio da Holanda, que recentemente mudou o nome da sua embaixada, de fato, em Taiwan. O The Netherlands Trade and Investment Office mudou o nome para "Netherlands Office Taipei". A China respondeu com ameaças de interromper as remessas de suprimentos médicos, ameaça esta que poderia ser só para inglês ver: recentemente a Holanda fez o recall de 600 mil máscaras de proteção importadas da China que estavam fora do padrão.
Enquanto os europeus se encolhem de medo diante da China comunista, sobra tempo para eles fazerem ameaças contra a única democracia do Oriente Médio. Em 30 de abril, onze embaixadores europeus em Israel advertiram Jerusalém que haverá "graves consequências" se o país prosseguir com os planos de anexar partes da Cisjordânia.
Em um longo ensaio publicado pelo jornal Die Welt, Mathias Döpfner, CEO da Axel Springer, a maior editora da Europa, sustentou que chegou a hora da Europa optar entre os Estados Unidos e a China:
"Uma vez encontrado um tratamento para o vírus e quando os debates sobre confinamento e relaxamento das restrições tiverem passado e a recessão mostrado a sua face horrenda, nada menos do que por os pingos nos is da própria ordem mundial. Melhor dizendo: a questão da aliança. Qual o posicionamento da Europa? Ao lado dos EUA ou da China?..."
"Os Estados Unidos decidiram claramente adotar uma política de 'desvencilhamento' da China. Se a Europa não quiser que sua liberdade seja atropelada por Pequim, ela deve decidir com qual dos dois países ela quer se aliar e sem demora."
"Vira e mexe nos dizem que não se trata de escolha excludente, que se trata de ter o melhor dos dois mundos. A realidade é justamente o oposto. Não há necessidade de nenhuma retórica elegantemente elaborada, temos que tomar uma decisão política de suma importância". China ou EUA. Não dá mais para escolher os dois...
"A Europa vem driblando a questão da aliança há muito tempo, agora chegou a hora de tomar a decisão. Isso não tem a ver diretamente com a crise do coronavírus. E certamente também não tem nada a ver com a questão de onde se originou o vírus."
"A crise dirige o foco na forma de encararmos as dependências de longo prazo, mesmo as assim chamadas cadeias de suprimentos essenciais, a maneira de encararmos as diferenças fundamentais na comunicação e controle de crises e a forma de contemplarmos, em última análise, o conceito totalmente divergente de humanidade..."
"Até agora a Europa não deixou claro o seu posicionamento, preferindo ficar em cima do muro, em condições de pender a balança ao seu bel-prazer. Ela chega a acreditar que esse oportunismo é sinal de independência e coragem. No entanto, a Europa nunca será capaz de jogar em ambos os lados e ser a queridinha de todos. Em se tratando de questões de ordem mundial, é uma coisa ou outra..."
"A economia da Europa gosta de fazer acordos com a China e não quer que isso pare. Os políticos estão reticentes. Os italianos estão até dispostos a se curvarem ao ridículo eufemismo chinês da 'Nova Rota da Seda'."
"Na Europa ouvimos gradativa e incessantemente palavras de admiração em relação à celeridade e eficiência da economia de mercado da China, a metódica natureza de seu gerenciamento de crises. Pronta e alegremente ignorando o fato de que os sucessos da China se baseiam em um sistema altamente aperfeiçoado de vigilância digital que remetem as perversidades da KGB e da Stasi para o século XXI..."
"As relações econômicas com a China podem hoje até parecer inofensivas aos olhos de muitos europeus, mas em um futuro não muito distante poderão levar à dependência política e em última instância ao fim de uma Europa livre e liberal. A opção está nas mãos da União Europeia. Mas, acima de tudo, a opção está com o motor econômico da Europa, a Alemanha."
"Deveríamos fazer um pacto com um regime autoritário ou trabalhar para fortalecer uma comunidade de economias de mercados livres, governadas constitucionalmente por sociedades liberais? É impressionante que a política alemã, com todo seu amor pela moralização, dá a impressão de jogar seus valores pela janela quando ela lida com a China. O que está em jogo aqui não é nada menos do que a opção pela sociedade na qual queremos viver e nosso conceito de humanidade."
"Se a atual política europeia e, acima de tudo, a alemã com respeito à China continuar, acabará levando a um gradual desvencilhamento dos Estados Unidos e a uma infiltração e prostração passo a passo em relação à China. A dependência econômica será apenas o primeiro passo. A influência política virá na esteira."
"No frigir dos ovos é muito simples. Que tipo de futuro queremos para a Europa? Uma aliança com uma democracia imperfeita ou com uma ditadura perfeita? Deveria ser uma decisão fácil para nós tomarmos. É mais do que só dinheiro, trata-se da nossa liberdade, do artigo 1º da Constituição da Alemanha, o termo jurídico mais importante de todos os tempos: a dignidade humana".
Soeren Kern é colaborador sênior do Gatestone Institute sediado em Nova Iorque.