O Tribunal de Recursos, hierarquicamente o segundo tribunal mais importante da Inglaterra e do País de Gales, atrás apenas do Supremo Tribunal, decidiu que o contrato de casamento islâmico, conhecido como nikah em árabe, não é válido à luz da lei inglesa. Foto: Supremo Tribunal de Londres, sede do Tribunal de Recursos. (Imagem: Anthony M/Wikimedia Commons) |
O Tribunal de Recursos, hierarquicamente o segundo tribunal mais importante da Inglaterra e do País de Gales, atrás apenas da Suprema Corte, decidiu que o contrato de casamento islâmico, conhecido como nikah em árabe, não é válido à luz da lei inglesa.
A decisão histórica promove consequências de longo alcance. De um lado, a decisão bate de frente contra os esforços de consagrar esse aspecto da Lei Islâmica (Sharia) no sistema jurídico britânico. Do outro, deixa milhares de mulheres muçulmanas, em potencial, na Grã-Bretanha sem recurso legal em caso de divórcio.
O caso diz respeito a um casal separado, Nasreen Akhter e Mohammed Shabaz Khan, ambos de origem paquistanesa, que participaram da Nikah, cerimônia oficiada por um imã diante de 150 convidados em um restaurante em Londres em dezembro de 1998.
Em novembro de 2016, Akhter, advogada de 48 anos, pediu divórcio segundo consta porque Khan queria ter mais uma esposa além dela. Khan, de 48 anos, proprietário de uma incorporadora, tentou obstruir o pedido de divórcio de Akhter, sob a alegação de que eles não eram casados legalmente de acordo com a lei inglesa. Khan disse que eles casaram "apenas conforme a lei da Sharia" e entrou na justiça para impedir que Akhtar reivindicasse dinheiro e bens dele como se fossem legalmente casados.
Akhter disse que o casal, que tem quatro filhos, pretendia se casar no civil logo após a nikah, conforme a lei inglesa. Entretanto, não houve nenhum casamento civil, porque, segundo Akhter, Khan se recusava.
Em 31 de julho de 2018, a Vara de Família do Supremo Tribunal de Londres deliberou que o caso da nikah seria julgado na esfera do Regime de bens matrimoniais e Direito Intertemporal de 1973, que estabelece três categorias de casamento: válido, nulo e não casamento. Casamentos válidos podem terminar com um decreto de divórcio, casamentos nulos podem terminar com um decreto de nulidade, não casamentos não podem ser legalmente terminados porque legalmente o casamento nunca existiu.
O Supremo Tribunal deliberou que o casamento de Akhter/Khan se inseria na categoria de "casamento nulo" porque "desconsiderou certos requisitos quanto à formação do casamento". Portanto o Supremo decidiu que Akhter tinha direito a um "decreto de nulidade do casamento".
O advogado geral da união em nome do governo britânico, entrou com um recurso alegando que era equivocado considerar o casamento como sendo "nulo" e não "não casamento".
Em 14 de fevereiro de 2020, o Tribunal de Recursos de Londres revogou a decisão do Supremo Tribunal e deliberou que os casamentos nikah são "não casamentos" segundo a lei inglesa. Na sentença, o tribunal explicou o seguinte:
"O Tribunal de Recursos considera que a cerimônia da Nikah realizada em dezembro de 1998 não constitui um casamento nulo porque não houve nenhuma cerimônia válida. As partes não se casaram "de acordo com as disposições" da lei inglesa (Parte II da Lei de Casamentos de 1949). A cerimônia não foi realizada em um local registrado para tal fim. Além disso, o Cartório de Registro Civil não foi informado de nada, não foi emitida nenhuma certidão e nenhum escrivão ou pessoa autorizada esteve presente durante a cerimônia. Além disso, as partes sabiam que a cerimônia não tinha efeito legal e que eles precisariam realizar outra cerimônia que cumprisse com os requisitos necessários para que o casamento fosse legalmente válido. Determinar se um casamento é nulo ou não, na opinião do Tribunal, não pode depender de eventos futuros, como por exemplo, a intenção de realizar outra cerimônia ou se há filhos ou não."
"Não há como justificar tratar uma cerimônia civil, que as partes tinham a intenção de realizar como se ela tivesse realmente ocorrido, o que de fato nunca ocorreu. Isso pode resultar em uma das partes acreditar estar casada, mesmo que ela mude de ideia e se separe no meio do processo de formalização do casamento. O que seria inconsistente com a abolição do direito de processar por quebra de um acordo de casamento segundo a Artigo 1º da Reforma Legislativa (Disposições Gerais) de 1970. As intenções das partes não podem mudar o que seria uma cerimônia não qualificável em uma cerimônia realizada de acordo com a Lei de Casamentos de 1949."
O Tribunal de Recursos salientou: "não é complicado para as partes que desejam casar legalmente atingir tal status".
A decisão do Tribunal, que Akhter provavelmente irá contestar com recurso de apelação na Suprema Corte, foi recebida com indignação por ativistas que argumentam que milhares de mulheres muçulmanas não terão direitos legais quando se tratar de divórcio na Grã-Bretanha.
Em um comunicado à imprensa, Southall Black Sisters, um grupo de defesa de mulheres do sul da Ásia, ressaltou:
"Procuramos informar ao Tribunal de Recursos que muitas mulheres pertencentes a minorias, em especial muçulmanas, são enganadas ou coagidas por maridos abusivos a se casarem somente na cerimônia religiosa, o que as priva de direitos a bens quando o casamento acaba."
"O Tribunal considerou que 'não é complicado para as partes que desejam casar legalmente atingir tal status". Mas tal deliberação desconsidera relatos de inúmeras mulheres pertencentes a minorias que têm grande dificuldade em obter esse status no contexto do abuso doméstico, dinâmica familiar patriarcal e consideráveis desigualdades de poder..."
"A decisão de hoje forçará as muçulmanas e outras mulheres a recorrerem aos 'tribunais' da Sharia que já estão causando danos significativos a mulheres e crianças em busca de soluções, porque agora elas estão marginalizadas do sistema de justiça civil".
Segundo levantamento realizado em novembro de 2017, para o documentário do Channel 4: A Verdade Sobre o Casamento Muçulmano, foi constatado que quase todas as mulheres muçulmanas casadas na Grã-Bretanha tiveram uma nikah, porém, mais de 60% não se casaram no civil, o que tornaria o casamento legal segundo a lei britânica.
Em fevereiro de 2018, uma avaliação independente da aplicação da lei da Sharia na Inglaterra e no País de Gales, encomendada por Theresa May em maio de 2016, quando ela era Secretária do Interior, recomendou alterações na Lei de Casamentos de 1949 e algo semelhante no Regime de bens matrimoniais e Direito Intertemporal de 1973 que exigiriam que os muçulmanos realizassem casamentos civis antes ou concomitantemente à cerimônia do casamento nikah. Isso alinharia o casamento islâmico ao casamento cristão e judeu aos olhos da lei britânica. O estudo assinalou:
"vincular o casamento islâmico ao casamento civil, garantirá que um número maior de mulheres tenha total proteção no âmbito do Direito da Família e direito ao divórcio civil, diminuindo a necessidade de se submeter e simplificando o processo de decisão dos conselhos da Sharia."
A avaliação realçou:
"segundo a opinião do painel, as evidências mostram serem necessárias mudanças culturais nas comunidades muçulmanas para que elas reconheçam os direitos das mulheres conforme o direito civil especialmente nas esferas do casamento e divórcio. Campanhas de conscientização, programas educacionais e outras medidas do gênero devem ser implementadas para educar e informar as mulheres sobre seus direitos e responsabilidades, como a necessidade de destacar a proteção legal que os casamentos realizados em Cartórios de Registro Civil proporcionam."
Por fim, o painel recomenda que o governo crie uma nova agência para regular os tribunais da Sharia, para que possam ser legitimados:
"o órgão elaborará um código de prática para os conselhos da Sharia aceitarem e implementarem. É claro que haverá um custo pontual para o governo criar o órgão, mas o sistema logo se 'autorregulará'".
Em março de 2018, o então Secretário de Estado Sajid Javid, em um relatório com proposta de políticas intitulado "Estratégia para Comunidades Integradas" respondeu:
"Saudamos a revisão independente sobre a aplicação da lei da Sharia na Inglaterra e no País de Gales. Casais de comunidades religiosas há muito conseguem dar entrada com a papelada para obter a Certidão de Casamento legalmente reconhecido via cerimônia religiosa, se os requisitos legais forem satisfeitos."
"No entanto, compartilhamos a preocupação levantada na avaliação de que alguns casais podem se casar de uma maneira que não lhes dê as proteções legais disponíveis em casamentos realizados sob os auspícios de um Cartório de Registro Civil. Também estamos preocupados com relatos de mulheres sendo discriminadas e tratadas de forma a violar seus direitos por alguns conselhos religiosos."
"O governo apoia, em princípio, a exigência dos casamentos civis serem realizados antes ou ao mesmo tempo das cerimônias religiosas. Portanto, o governo explorará as questões práticas e legais da limitada reforma relacionada à lei sobre casamentos civis e religiosos."
"O governo considera que a proposta de avaliação para criar um esquema de regulamentação com apoio ou endosso do Estado aos conselhos da Sharia conferiria a eles legitimidade como formas alternativas para a solução de litígios. O governo não considera que deva haver um papel para o Estado agir nesse sentido."
Em janeiro de 2019, o Conselho da Europa (COE), a principal organização de direitos humanos do continente, manifestou preocupação em relação ao papel dos tribunais da Sharia no direito de família, herança e comércio na Grã-Bretanha. O COE pediu que o governo removesse obstáculos que impedem as mulheres muçulmanas de terem acesso à justiça:
"embora esses conselhos não sejam considerados parte integrante do sistema jurídico britânico, eles procuram oferecer uma forma alternativa para a solução de conflitos, na qual membros da comunidade muçulmana, às vezes voluntariamente, muitas vezes sob considerável pressão social, aceitam sua jurisdição em assuntos religiosos, principalmente em questões conjugais e processos de divórcio islâmico, mas também em questões relacionadas à herança e contratos comerciais islâmicos. O COE teme que as decisões dos conselhos da Sharia discriminem flagrantemente as mulheres em casos de divórcio e herança".
O COE também fixou o prazo para junho de 2020 para que o Reino Unido responda sobre a avaliação em relação à Lei de Casamentos, o que tornaria uma exigência legal a casais muçulmanos contraírem matrimônio no civil, o que já é exigido para casamentos de cristãos e judeus.
Um porta-voz do Home Office respondeu o seguinte à resolução do COE:
"A lei da Sharia não faz parte da lei na Inglaterra nem no País de Gales. Independentemente da crença religiosa, somos todos iguais perante a lei. Onde quer que haja conselhos da Sharia, eles devem respeitar a lei."
"As leis estão aí para protegerem os direitos das mulheres e impedirem a discriminação, nós trabalharemos com as autoridades competentes para garantir que essas leis sejam aplicadas exemplarmente, tim-tim por tim-tim".
Até o momento, nem o governo britânico nem o Parlamento Britânico introduziram qualquer legislação exigindo que os muçulmanos realizem casamentos civis antes ou ao mesmo tempo que a cerimônia da nikah.
A decisão do Tribunal de Recursos, no entanto, pisa no freio no avanço da lei da Sharia sobre o sistema jurídico britânico. A decisão do tribunal efetivamente reitera o princípio segundo o qual os imigrantes que se estabelecerem na Grã-Bretanha devem respeitar a lei britânica, e não o contrário.
Soeren Kern é membro sênior do Gatestone Institute de Nova Iorque.