A chanceler alemã Angela Merkel salientou recentemente que o novo pacto entre a Alemanha e a França visa estabelecer uma "cultura militar comum" franco/alemã e "contribuir para a criação de um exército europeu." Foto: soldados da brigada franco/alemã, unidade militar criada em 1989, consistindo de unidades conjuntas dos exércitos francês e alemão. (Foto: Sean Gallup/Getty Images) |
O presidente francês Emmanuel Macron e a chanceler alemã Angela Merkel assinaram um novo tratado de amizade franco/alemão que visa revigorar a União Europeia, atingida pelo rombo financeiro, migração em massa e o Brexit, bem como os inúmeros interesses e prioridades conflitantes entre os 28 Estados Membros.
A França e a Alemanha, autoproclamadas guardiãs da integração europeia, ressaltaram que o novo tratado é uma resposta à crescente influência de populistas na Áustria, Grã-Bretanha, França, Itália, Hungria, Polônia e outros países europeus que procuram cozinhar o galo ou até mesmo reverter a integração europeia, resgatar da União Europeia a soberania nacional e transferir os poderes ora em suas mãos de volta às capitais de cada país.
O cabo de guerra no velho continente que ameaça dividir a União Europeia ao meio, de um lado os nacionalistas eurocéticos e do outro os globalistas 'eurófilos', promete esquentar nas próximas semanas que antecedem as eleições para o Parlamento Europeu no final de maio de 2019.
O "Tratado de Aachen" (Traité d'Aix-la-Chapelle;Vertrag von Aachen), assinado em 22 de janeiro na cidade alemã de Aachen, consiste de 28 artigos organizados em sete capítulos, ambos os países se comprometem empreender estreita cooperação na esfera política. Os primeiros oito artigos, que abrangem a política bilateral externa e de defesa, bem como a União Europeia, são os itens mais ambiciosos e marcantes do tratado:
- No Artigo 1º os dois países assumem o compromisso de estreitar a cooperação no tocante à política europeia, "promovendo uma política externa e de segurança comum, forte e eficiente, reforçando e aprofundando a União Econômica e Monetária".
- No Artigo 2º os dois países assumem o compromisso de "se consultarem regularmente em todos os níveis hierárquicos antes das mais importantes reuniões europeias, procurando estabelecer um denominador comum, alinhando os discursos de seus ministros. Eles coordenarão a transposição do direito europeu para o direito nacional de seus respectivos países."
- No Artigo 3º ambos os países assumem o compromisso de "aprofundar a cooperação em relação à política externa, defesa, segurança interna e externa, desenvolvimento e simultaneamente não medir esforços no sentido de fortalecerem a capacidade autônoma de ação da Europa". Os dois países também se comprometem a "averiguar minuciosamente, em parceria, com a finalidade de definir posições comuns sobre qualquer decisão chave que afete os interesses comuns e agir em conjunto em todas as situações cabíveis".
- No Artigo 4º os dois países assumem o compromisso de "convergir cada vez mais em seus objetivos e políticas com respeito à segurança e defesa". Prestar assistência um ao outro sem medir esforços, fazendo uso de todos os meios disponíveis, como as forças armadas, em caso de ataques armados contra os seus territórios." Eles também "se comprometem a fortalecer a capacidade de ação da Europa e investir conjuntamente para suprir as necessidades funcionais, fortalecendo a União Europeia e a Aliança do Atlântico Norte." Pretendem promover a competitividade e a consolidação da base industrial e tecnológica da defesa europeia... apoiam a cooperação mais estreita possível de suas indústrias de defesa fundamentadas na confiança mútua... ambos os países desenvolverão uma abordagem comum no que tange as exportações de armas com respeito a projetos conjuntos. Os dois países "estabelecerão o Conselho de Defesa e Segurança Franco/Alemão como o órgão político para administrar os compromissos de ambas as partes. O Conselho se reunirá regularmente no mais alto nível hierárquico."
- No Artigo 5º ambos os países assumem o compromisso de "expandir a cooperação entre os ministérios de relações exteriores, incluindo suas missões diplomáticas e consulares", alinhar o posicionamento nas Nações Unidas e na OTAN.
- No Artigo 6º os dois países assumem o compromisso de "fortalecer ainda mais a cooperação bilateral na luta contra o terrorismo e o crime organizado, bem como a cooperação no judiciário e nas questões de inteligência e polícia".
- No Artigo 7º ambos os países assumem o compromisso de "estabelecer uma parceria ainda mais estreita entre a Europa e a África... com o objetivo de melhorar as perspectivas socioeconômicas, sustentabilidade, boa governança, prevenção de conflitos, resolução de crises, especialmente no contexto da manutenção da paz e gestão de cenários problemáticos pós-conflitos".
- No Artigo 8º os dois países assumem o compromisso de "cooperar conjuntamente em todos os órgãos das Nações Unidas". Eles irão "alinhar suas posições, o que será parte integrante de um esforço concentrado de ampla consulta entre os Países Membros da UE que fazem parte do Conselho de Segurança da ONU e de acordo com as posições e interesses da União Europeia". Eles "não medirão esforços para alcançar um posicionamento uníssono da União Europeia nos órgãos adequados das Nações Unidas". Os dois países também "se comprometem a continuar com os programas de reformas no Conselho de Segurança das Nações Unidas". A admissão da Alemanha como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas "é uma prioridade da diplomacia franco/alemã".
O restante do tratado promete uma cooperação bilateral mais estreita nas áreas da inteligência artificial, mudanças climáticas, questões fronteiriças, cultura, assuntos econômicos, educação, energia, meio ambiente, saúde e desenvolvimento sustentável, entre outras coisas.
O discurso da chanceler Merkel Aachen, lembrou que a cidade era o lar de Carlos Magno (742/814), que ela destacou como "pai da Europa". Ela salientou que o novo pacto visa estabelecer uma "cultura militar comum" franco/alemã e "contribuir para a criação de um exército europeu". Ela ainda ressaltou:
"O populismo e o nacionalismo estão avançando em todos os países europeus. Pela primeira vez, um país, a Grã-Bretanha, está deixando a União Europeia. Nos quatro cantos do planeta, o multilateralismo está sob pressão, seja na cooperação climática, no comércio mundial, na aceitação de instituições internacionais até mesmo nas Nações Unidas. Setenta e quatro anos, o ciclo de uma vida, após o término da Segunda Guerra Mundial, o que parecia ser o óbvio ululante é mais uma vez posto em dúvida.
"De modo que, em primeiro lugar, essa situação exige uma nova viga mestra no tocante à nossa responsabilidade dentro da União Europeia, a responsabilidade da Alemanha e da França nessa União Europeia. Em segundo lugar, ela requer uma redefinição de rumo da nossa cooperação. Em terceiro lugar, ela requer uma leitura comum do nosso papel no cenário internacional, o que poderá levar a uma ação conjunta. Por isso, em quarto lugar, há a necessidade de compartilhar similaridades entre nossos dois povos, nas instituições, mas acima de tudo no cotidiano de nossos povos, especialmente nas regiões fronteiriças...
"Assumimos o compromisso de desenvolver uma cultura militar comum, uma indústria de defesa comum e uma linha comum no tocante à exportação de armas. Queremos contribuir para o nascimento de um exército europeu".
Macron, também discursando em Aachen, ressaltou: "no momento que a Europa é ameaçada pelo nacionalismo, que está se avolumando, a Alemanha e a França devem assumir suas responsabilidades e mostrar o caminho a seguir". Ele disse que o acordo é um "momento importante" para mostrar que o relacionamento bilateral é "um baluarte capaz de se autorenovar... com o propósito de consolidar o projeto europeu". Macron defendeu a União Europeia como sendo um "escudo contra os tumultos do mundo".
O tratado, no entanto, é parco quanto a detalhes e pode acabar sendo mais simbólico do que concreto. Merkel e Macron estão vendo suas autoridades em franco declínio e ainda não está claro se eles terão o capital político necessário para por em movimento a integração europeia. A Alemanha está agora de olho na era pós-Merkel, depois dela ter anunciado que se afastará do cargo de chanceler em 2021. Macron está às voltas com uma onda de protestos de alcance nacional que ainda pode derrubar o seu governo.
O tratado foi recebido com um misto de raiva e indiferença.
Na França, Marine Le Pen, líder do partido populista União Nacional (antiga Frente Nacional), salientou que o tratado solapa a soberania nacional, acusando Macron de "vender" a França para os alemães. Em entrevista concedida ao jornal Le Temps de Genebra ela sustentou:
"Convergir tanto assim em relação à Alemanha é abdicar da soberania, uma traição. Se não tivéssemos alertado o público, o texto teria sido assinado na calada da noite. O texto prevê, mormente, a necessidade de legislar caso haja obstáculos à cooperação franco/alemã. A nação francesa é una e indivisível e a lei não pode ser aplicada de maneira diferente nas regiões que fazem fronteira com a Alemanha. Há a letra do tratado, mas também há o espírito do tratado. Não quero mais convergência com Berlim, seja em questões sociais ou de segurança, nem em se tratando de consultas estreitas no Conselho de Segurança da ONU. O assento permanente da França no Conselho de Segurança foi duramente conquistado durante a Segunda Guerra Mundial e tornou a França uma grande potência. Por isso em dúvida, seria deixar ir pelo ralo a conquista do general de Gaulle."
Nicolas Dupont-Aignan, líder do partido soberanista Debout La France! (França, de Pé!) salientou:
"Em nenhuma circunstância esse tratado de amizade franco/alemão poderá vir a ser um pretexto para a submissão. No entanto, parece que é esse o caso.
"Primeiro, o método de concepção do tratado. Diante da crise democrática pela qual nosso país está passando, Emmanuel Macron quer um grandioso debate com cidadãos que participam da vida pública de nosso país. Ao mesmo tempo, porém, o presidente da república negociou um tratado às escondidas, muito embora esse tratado diga respeito às condições essenciais para o exercício de nossa soberania nacional. Nem o povo francês, nem o Parlamento, nem o Conselho Constitucional foram consultados.
"Segundo, o conteúdo do tratado. Em termos concretos, inúmeras estipulações do tratado visam compartilhar com a Alemanha os poderes soberanos e as prerrogativas da França. Com efeito, se a defesa mútua é parte integrante do tratado, então a França está cedendo à Alemanha as benesses de seu poderio militar, invejados nos quatro cantos da terra: (a quinta maior potência militar do mundo, dissuasão nuclear, etc.) (Artigo 4). A França proporciona à Alemanha acesso à sua rede diplomática, a terceira maior do mundo, atrás somente dos Estados Unidos e da China (Artigo 5). A França proporciona à Alemanha acesso indireto ao seu assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, coordenando suas posições como também coordenando as suas decisões (artigo 8º). A França quer que a Alemanha tenha um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, fazendo disso uma "prioridade" diplomática (artigo 8º). Por inúmeras razões, este tratado passa por cima da nossa soberania nacional.
"E por fim, falta de reciprocidade. Enquanto a Alemanha leva vantagem em cima dos pontos fortes da França como potência mundial em diplomacia e defesa, a Alemanha não oferece nenhuma reciprocidade à altura. É por isso que o Tratado de Aix-la-Chapelle não é um ato de cooperação franco/alemão, mas de submissão da França à Alemanha.
"Na realidade, esse tratado, via de mão única, é um insulto ao relacionamento amigável que a França mantém com a Alemanha. Tendo em vista as concessões feitas pela França à Alemanha, sem contrapartida, o texto hoje assinado em Aix-la-Chapelle configura um verdadeiro ato de traição".
Na Alemanha, Alexander Gauland e Alice Weidel, líderes do partido populista Alternativa para a Alemanha (AfD),divulgaram uma nota:
"O Tratado de Aachen é um passo na direção errada. Sob o pretexto da cooperação europeia, o tratado é o resultado do interesse francês de transferir e redistribuir o poder alemão, em detrimento dos contribuintes alemães. O tratado também criará uma relação especial franco/alemã que alienará a Alemanha frente aos demais países europeus.
"O porta-voz da AfD Alexander Gauland explica: o presidente francês Macron é incapaz de manter a ordem em seu próprio país. Os protestos em todo o território francês não vão parar nunca. Este presidente fraco está impondo visões para o futuro da Alemanha. A UE está agora seriamente dividida. Um relacionamento especial franco/alemão nos alienará ainda mais em relação aos demais europeus. Isso torpedeia, ao pé da letra, aquelas ideias europeias que Merkel e Macron invocam de maneira tão calorosa. Parece que eles suspeitam que UE, do jeito que está, irá se esfarelar."
"A líder da AfD no Bundestag (parlamento da República Federal da Alemanha), Dra. Alice Weidel, ressalta: esse tratado é uma submissão inaceitável de uma chanceler eleita diante de um presidente que passa por poucas e boas. Macron conseguiu o que queria: a Alemanha assumiu compromissos, por exemplo no primeiro artigo: fortalecer e intensificar a União Econômica e Monetária, em outras palavras, bancar a transferência e a redistribuição de riqueza."
"Macron promete acesso mais rápido e mais fácil ao dinheiro dos contribuintes alemães para poder continuar com a política inflacionária francesa e custear suas promessas eleitorais. Ele já apresentou planos concretos para tanto e recebeu muitos aplausos de tradicionais partidos alemães."
"A França também deverá ser a principal beneficiária da planejada cooperação intensificada das forças armadas que tem o propósito de realizar operações conjuntas e na consolidação da indústria de defesa europeia, que também está prevista no tratado. O Artigo 4º do tratado abre as portas para novos e questionáveis envios de tropas à África e a venda suplementar da tecnologia alemã sob a égide das joint ventures dominadas pelos franceses."
"Esses pontos de interesse da política francesa estão inseridos na deplorável afirmação do óbvio e de uma pletora de medidas simbólicas e bem intencionadas declarações de intenção. Fora aos europeus como um todo, de que maneira esse tratado também servirá aos interesses alemães, permanece um mistério. O acordo reforça a rusga com os Estados Membros da UE que não querem um 'Superestado Europeu' franco/alemão. O Tratado de Aachen é, portanto, não apenas supérfluo, mas também contraproducente".
Soeren Kern é membro sênior do Gatestone Institute sediado em Nova Iorque.