O 7º dia do mês em curso marca dois anos do dia em que dois homens armados entraram na redação da revista satírica Charlie Hebdo em Paris e assassinaram doze pessoas. Portanto o período em pauta também marca o segundo aniversário do momento em que, por cerca de uma hora, grande parcela do mundo livre se autoproclamou "Charlie" e tentou, por meio de passeatas, parando por instantes em silêncio ou retuitando a hashtag "Je Suis Charlie" mostrar ao mundo que a liberdade não pode ser suprimida e que a caneta é mais poderosa do que o fuzil automático Kalashnikov.
De modo que passados dois anos é um bom momento para se fazer um balanço da situação. Quais foram os desdobramentos? Será que todas essas manifestações de "Je Suis" significaram algo mais do que um lampejo na esfera do Twitter? Qualquer um que tente responder a uma pergunta dessas poderia começar olhando para as condições em que se encontra a revista com a qual todos estavam tão preocupados. Como ela tem se saído nos dois anos desde que a maioria de sua equipe editorial mais importante foi morta a tiros pela polícia da blasfêmia?
Manifestação em Paris em 11 de janeiro de 2015 logo após o ataque contra a revista Charlie Hebdo, cartazes de "Je Suis Charlie". (Imagem: Olivier Ortelpa/Wikimedia Commons) |
Se o teste para se saber se a revista está se saindo bem fosse a sua disposição em repetir o "crime" pelo qual ela foi atacada, a resposta não é positiva. Seis meses depois do massacre ocorrido em julho de 2015, o novo editor da publicação, Laurent Sourisseau, anunciou que a Charlie Hebdo deixaria de publicar representações do Profeta do Islã. A Charlie Hebdo tinha, segundo ele, "feito a sua parte" e "defendeu o direito à caricatura". Ele já tinha publicado outras caricaturas de Maomé na edição imediatamente após a chacina desde então. Mas salientou que os membros do staff não precisam continuar com esse tipo de publicação. Poucos poderiam repreendê-lo e aos seus colegas sobre tal decisão. Quando praticamente todas as demais revistas do mundo livre não conseguem defender os valores da liberdade de expressão e do direito à caricatura e à afronta, é de se esperar que um grupo de cartunistas e escritores, que já pagou um preço tão alto para defender a mensagem dessas liberdades, continue a defendê-las sozinho?
A esta altura, no segundo aniversário da atrocidade, uma das figuras mais importantes da revista, Zineb El Rhazoui, anunciou que está deixando a revista. El Rhazoui, que vem sendo descrita como "a mulher mais protegida a França" por causa do tamanho e das especificidades de segurança que ela recebe do estado francês, anunciou que a Charlie Hebdo passou a tratar o radicalismo islâmico de maneira "light". Ela assinalou à Agence France-Presse que a "Charlie Hebdo morreu no dia 07 de janeiro de 2015". A revista já teve a "capacidade de carregar a tocha de irreverência e da liberdade absoluta", realçou ela. A liberdade a qualquer custo é o que eu amava na Charlie Hebdo onde trabalhei e passei por uma enorme adversidade".
Indubitavelmente El Rhazoui é uma pessoa fora do comum. Alguém extremamente difícil de se achar na Europa do Século XXI. É por isso mesmo que ela precisa de uma segurança tão específica. A maioria das pessoas que diz estar preocupada com o direito de dizer o que quiser, quando quiser, sobre o que bem entender - incluindo sobre uma religião particularmente dura e amarga - estava falando sério, ou seja: aqueles manifestantes estavam dispostos a caminhar pelas ruas de Paris exibindo um lápis nas mãos. Ou então estavam simplesmente a fim de falar por falar, proclamando "Je Suis Charlie". Mas na realidade quase ninguém estava falando sério. Caso contrário - conforme a análise de Mark Steyn - as multidões em Paris não estariam desfilando pelas ruas com lápis nas mãos e sim segurando caricaturas de Maomé. "Vocês terão que nos matar a todos" teria sido a mensagem.
O mesmo vale para os líderes. Se o Presidente François Hollande e a Chanceler Angela Merkel realmente intencionassem defender a liberdade de expressão, então em vez de andarem de braços dados pelas ruas de Paris junto com alguém tão inconveniente como o líder da Autoridade Palestina Mahmoud Abbas, eles teriam exibido as capas da revista Charlie Hebdo e dito: "é assim que uma sociedade livre se comporta e é isso que defendemos: todos nós, líderes políticos, deuses, profetas, enfim todos podem ser satirizados e se vocês não gostarem da ideia então mudem-se para os buracos insalubres da escuridão que vocês tanto sonham. Uma vez que a Europa não é o continente adequado para vocês".
De modo que é desse jeito que uma revista satírica e grosseira se viu repetidamente julgada pelo implicante patrulhamento ideológico de nossos dias e muitas vezes considerada insuficientemente respeitosa em relação aos mais variados eventos mundiais. Uma caricatura da revista Charlie Hebdo sobre os ataques sexuais ocorridos na virada o ano em Colônia foi considerada de mau gosto. Em outros lugares, a reação da revista ao terremoto ocorrido na Itália não conseguiu acertar em nada perante os olhos de alguns não leitores. Na mesma linha a queda de um jato russo e outras histórias foram consideradas como não tendo sensibilidade para com os outros.
Enquanto isso, estamos passando por uma situação segundo ressaltou o escritor britânico Kenan Malik sobre a "interiorização" da atrocidade no tocante ao período logo após o caso dos Versos Satânicos. A imprensa mundial inteira - especialmente nos países livres - interiorizou o que aconteceu na redação da revista Charlie Hebdo e, em vez de permanecer unida, decidiu em silêncio e na privacidade de suas próprias redações jamais arriscar que algo assim também aconteça a ela. Esta nova submissão às exigências terroristas islamistas acontece provavelmente porque em 2016 quando um atleta sem envolvimento algum na política, religião ou sátira foi pego fazendo algo que poderia ter sido visto como menos do que absolutamente respeitoso em relação ao Islã, não havia ninguém por perto para defendê-lo. Até mesmo a primeira-ministra britânica Theresa May chegou a pedir à Câmara dos Comuns para defender o direito de um atleta de não ter sua carreira destruída por causa de uma equivocada e passageira zoada:
"Trata-se de um equilíbrio que temos que encontrar. Nós valorizamos a liberdade de expressão em geral e a liberdade de expressão neste país - isso é absolutamente essencial que esteja na base de sustentação da nossa democracia.
"Mas nós também valorizamos a tolerância em relação aos outros. Também valorizamos a tolerância em relação às religiões. Esta é uma das questões que estamos avaliando na estratégia do contraextremismo que o governo vem elaborando.
"Eu acredito que precisamos garantir que é de direito que as pessoas possam desfrutar dessa liberdade de expressão, mas ao adotá-la que ela também venha acompanhada de responsabilidade − e a responsabilidade é a de reconhecer a importância da tolerância para com os outros."
Não há dúvida que nos últimos dois anos aprendemos que essa tolerância é uma via de mão única. As nossas sociedades estão indo nesta direção. Mas na direção contrária vem a brigada Kalashnikov que só tem que abrir fogo uma vez. Em face disso, todo o mundo civilizado escolheu dar meia-volta e sair correndo. Os policiais do patrulhamento ideológico da polícia da blasfêmia seriam tolos demais em não aproveitar a vantagem que tal capitulação confere e continuará conferindo a sua causa nos meses e anos vindouros.
Douglas Murray, escritor, jornalista, comentarista e analista de relações públicas britânico, sediado em Londres, Inglaterra.