Faz dois meses que o Irã e a Arábia Saudita estão brincando de cabo-de-guerra para ver quem fica com a América Latina. Em 10 de novembro de 2015 o Vice-Ministro das Relações Exteriores do Irã se reuniu, a portas fechadas, com os embaixadores de nove países da América Latina para reiterar o desejo da República do Irã de "expandir e aprofundar os laços" com aquela região. No final daquele mês outras declarações no mesmo sentido foram proferidas pelo Presidente do Irã Hassan Rouhani e pelo Líder Supremo Aiatolá Ali Khamenei no Fórum dos Países Exportadores de Gás (GECF em inglês) em Teerã.
Naquele mesmo dia o Ministro das Relações Exteriores da Arábia Saudita Adel al-Jubeir presidiu uma reunião de cúpula sul-americana/árabe em Riad. O Ministro das Relações Exteriores al-Jubeir que já foi Embaixador nos Estados Unidos em 2011, foi alvo de uma conspiração de assassinato iraniana/latino americana.
A mensagem da reunião de cúpula saudita foi inequívoca: uma reaproximação árabe com os países sul-americanos irá aumentar o isolamento do Irã no mundo.
Lamentavelmente para a Casa de Saud, no caso da América do Sul, ela (Casa de Saud) está mais de trinta anos atrás de seus rivais persas.
Após a revolução de 1979, os líderes da recente estabelecida República Islâmica do Irã procuraram não só mudar seu país como também o mundo. Em 1982 o Irã sediou uma conferência internacional da Organização de Movimentos Islâmicos, reunindo mais de 380 clérigos de cerca de 70 países dos quatro cantos do planeta incluindo muitos da América Latina.[1] O propósito da conferência era exportar para o mundo a revolução iraniana.
No ano seguinte, em 1983, o Corpo de Elite da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã (IRGC em inglês) desfechou sua primeira operação terrorista internacional de grande vulto: o atentado a bomba contra os alojamentos dos Marines em Beirute. Essa ação levou à retirada das forças multinacionais do Líbano. Naquele mesmo ano o Irã começou a financiar e treinar o Hisbolá no Líbano. 1983 também foi o ano que a República Islâmica iniciou as operações secretas na América Latina.
Em 27 de agosto de 1983, o primeiro agente iraniano enviado à América Latina desembarcou em Buenos Aires, Argentina. Mohsen Rabbani não é um agente qualquer, ele é um dos agentes mais bem treinados e dedicados da inteligência iraniana. [2] Funcionários dos serviços de informação da América Latina o apelidaram de "professor de terrorismo".
Rabbani ficou mais de dez anos na Argentina, criando condições que abriram caminho para que Hisbolá desfechasse um dos maiores ataques terroristas, com total impunidade: o atentado desferido em 18 de julho de 1994, contra a AMIA (Asociación Mutual Israelita Argentina) Centro Cultural Judaico em Buenos Aires. O ataque, perpetrado por um homem bomba que levou um caminhão repleto de explosivos para o interior do edifício da AMIA, matou 85 pessoas e feriu outras centenas. Essa não foi a primeira vez que a Argentina se viu diante do terrorismo islâmico, dois anos antes em 17 de março de 1992, a Embaixada de Israel em Buenos Aires também foi atacada.
Muitas das autoridades que colaboraram com Rabbani para que ele pudesse executar o ataque contra a AMIA ainda são atores políticos de peso dentro da República Islâmica. Ahmad Vahidi, fundador da temida Unidade Especial do Exército dos Guardiães da Revolução Islâmica do IRGC que também foi até recentemente Ministro da Defesa, foi claramente citado no indiciamento oficial da AMIA pela Unidade de Investigações do Gabinete do Procurador Geral da Argentina. Mohsen Rezai e Ali Akbar Velayti, ambos candidatos à presidência nas eleições iranianas de 2013, também são claramente citados no mesmo indiciamento pelas autoridades argentinas.[3]
No decorrer dos últimos 32 anos, o Irã obteve um sucesso estrondoso no que tange a promoção da mensagem anti-israelense e antiamericana na América Latina. A rede de TV iraniana HispanTV pertencente ao governo do Irã, transmite programas em espanhol 24 horas por dia, sete dias por semana em pelo menos 16 países da região.
Formalmente o Irã também dobrou o número de embaixadas na América Latina, de seis em 2005 para as doze de hoje.
Informalmente, de acordo com o Comando do Sul dos Estados Unidos (USSOUTHCOM), o Irã inaugurou mais de 80 centros culturais islâmicos que vêm promovendo o Islã xiita em toda a América Latina. Esse número representa um crescimento de mais de 100% desde 2012 quando, de acordo com estimativas do USSOUTHCOM, o Irã controlava apenas 36.[4]
Mas acima de tudo, o Irã estabeleceu uma presença militar e de inteligência sem precedentes, que se estende da Terra do Fogo no extremo sul da Argentina até o Rio Grande na fronteira com os Estados Unidos. O Irã atua em todos os países da América Latina.
A falta de transparência, corrupção na política, altos níveis de criminalidade e violência, isso sem falar das crescentes atitudes antiamericanas e anti-israelenses na América Latina, possibilitaram ao Irã usufruir desse sucesso. Dados os esforços de um punhado de governos regionais em revolucionar a região, essa propensão só fez crescer na última década. Graças ao legado do falecido Hugo Chávez e seus contemporâneos como Nicolás Maduro, Rafael Correa, Evo Morales, Daniel Ortega, Cristina Fernández de Kirchner, Salvador Sánchez Cerén e outros, o Irã goza de um poder jamais visto na América Latina.
Apesar da recente eleição realizada na Argentina oferecer uma nova oportunidade para o presidente eleito Mauricio Macri, isso por si só não enfraquece a influência do Irã sobre o continente. Por mais de três décadas a República Islâmica vem estudando a prática política e as propensões socioeconômicas da região. Em vários países o Irã tem uma presença e influência maior que a dos Estados Unidos.
A importância da América Latina para o Irã foi realçada por artigo bomba publicado em março deste ano na revista Veja. Por meio de entrevistas concedidas por informantes do alto escalão venezuelano, que estão colaborando com as autoridades norte-americanas, a reportagem da Veja denuncia que a mudança da posição de décadas do governo argentino em relação à política de congelamento nas relações diplomáticas com o Irã (devido ao atentado contra a AMIA em 1994) não foi alterada em 2013 com o polêmico Memorando de Entendimentos (MOU), assinado pelos dois países. A posição política argentina também não mudou dois anos antes, em 2011 quando o Ex-Ministro das Relações Exteriores Argentina Hector Timmerman se reuniu secretamente na Síria com o seu então colega iraniano Ali Akbar Salehi a fim de negociar a MOU, que tinha como objetivo encobrir o papel do Irã no ataque à AMIA.[5]
Muito pelo contrário, o artigo da Veja revelou que o início do estreitamento das relações da Argentina com o Irã se deu em 2007 quando a então Senadora Cristina Fernández de Kirchner se tornou presidente da Argentina, em parte graças ao apoio financeiro recebido do Irã, cortesia de Hugo Chávez da Venezuela.[6] A altamente polêmica MOU entre a Argentina e o Irã foi na realidade uma promessa de campanha feita seis anos antes pelo presidente argentino Fernández de Kirchner, que estava no fim do mandato.
A revelação mais digna de nota do artigo da Veja, no entanto, não é quem o Irã subornou e comprou na América Latina e sim a razão do suborno iraniano.
De acordo com os informantes venezuelanos, encobrir os acusados iranianos do ataque à AMIA foi tão somente o objetivo secundário na aproximação clandestina para com a Argentina. O objetivo primordial foi obter acesso aos materiais e à tecnologia nuclear da Argentina, meta esta, ao que tudo indica, um desejo iraniano de mais de três décadas.
Segundo o falecido Dr. Alberto Nisman, promotor geral da Argentina que investigava o ataque contra a AMIA, o objetivo de acessar o sigiloso programa nuclear argentino é o motivo pelo qual a Argentina foi o alvo do Irã e do Hisbolá no início os anos 1990. De acordo com o Dr. Nisman, a motivação do Irã em visar Buenos Aires no ataque contra a AMIA foi uma resposta direta ao cancelamento por parte do governo argentino dos acordos de cooperação nuclear em vigor entre os dois países desde meados dos anos 1980.[7]
No artigo da Veja consta uma exposição esclarecedora sobre uma reunião, a portas fechadas, realizada em 13 de janeiro de 2007 entre o então Presidente do Irã Mahmoud Ahmadinejad e o falecido Presidente da Venezuela Hugo Chávez. No encontro Ahmadinejad diz a Chávez:
"É um assunto de vida ou morte. Preciso que intermedeie junto à Argentina uma ajuda para o programa nuclear de meu país. Precisamos que a Argentina compartilhe conosco a tecnologia nuclear. Sem a colaboração do país, será impossível avançar em nosso programa."
"Impossível" é uma palavra muito forte. Se for verdade, essa informação sugere que o Irã precisa da América Latina para desenvolver seu ultra-ambicioso programa nuclear. Para o Irã a América Latina não é apenas uma atividade secundária, a região pode muito bem ser a prioridade máxima de sua política externa fora os interesses imediatistas no Oriente Médio.
A morte prematura e misteriosa do Dr. Alberto Nisman, pela qual ninguém foi indiciado formalmente, cujo corpo foi encontrado em 18 de janeiro de 2015 horas antes dele apresentar as últimas evidências do caso AMIA diante o congresso argentino, em essência abriu caminho para uma influência ainda maior dos iranianos na América Latina. A suspensão das sanções e a entrada de bilhões de dólares como resultado do acordo nuclear do Irã com o P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas mais a Alemanha) irá sem a menor sombra de dúvida ajudar o Irã em sua empreitada pela hegemonia global. É uma empreitada fácil com grandes chances de sucesso em se tratando da América Latina, onde muitos países estão passando por turbulências na economia, podendo assim dar boas-vindas aos "estímulos" iranianos.
Ao passo que a América Latina não raramente é considerada um lugar atrasado e sem muita importância para os Estados Unidos, ela é de grande valia geopolítica para a República Islâmica do Irã. Parece que a Arábia Saudita acaba de acordar em relação a esse fato. Já era tempo dos estrategistas políticos dos EUA fazerem o mesmo.
Joseph M. Humire é o Diretor Executivo do Center for a Secure Free Society (Centro para uma Sociedade Livre e Segura - SFS) e co-editor do livro Iran's Strategic Penetration of Latin America (Lexington Books, 2014)
[1] Alberto Nisman citou a conferência da OLM realizada no Irã tanto no indiciamento oficial de 2006 que tratava do ataque contra a AMIA, bem como seu pronunciamento de 2013 sobre a expansão da rede terrorista do Irã em toda a América Latina.
[2] Para obter uma descrição mais detalhada sobre Mohsen Rabbani e seu papel no ataque à AMIA em 1994, acesse a tradução para o inglês da íntegra do indiciamento de 2006 contra o Irã, da Unidade de Investigações do Gabinete do Procurador Geral da Argentina.
[3] O Comitê Executivo da Interpol não emitiu um Alerta Vermelho contra Ali Akbar Velayti porque na época do ataque contra a AMIA ele era Ministro das Relações Exteriores do Irã.
[4] Acesse posture statement de 2012 do General Douglas M. Fraser e o posture statement de 2015 do General John F. Kelly perante a Casa do Comitê de Serviços Armados para avaliar as estimativas do USSOUTHCOM sobre os centros culturais islâmicos contratados pelos iranianos na América Latina.
[5] Para obter mais informações sobre as investidas do governo argentino para negociar junto ao Irã a impunidade do ataque contra a AMIA, acesse as denúncias formais de Alberto Nisman perante o Tribunal Federal de Justiça da Argentina em 14 de janeiro de 2015.
[6] Houve um caso de corrupção política na Argentina que ficou conhecido pelo nome de "maletinazo" no qual um homem de negócios americano/venezuelano transferiu ilegalmente US$800.000 para a Argentina em 2007 para ajudar a financiar a campanha eleitoral da então candidata à presidência Cristina Fernández de Kirchner. Acreditava-se que o dinheiro tivesse vindo da Venezuela, posteriormente porém, descobriu-se que provavelmente veio do Irã.
[7] Na subseção C.2 "motivos para desencadear o ataque na Argentina" (páginas 263 a 285) do indiciamento oficial da AMIA em 2006, o Dr. Nisman explica, de forma inequívoca, que o cancelamento da cooperação nuclear foi o motivo primordial do ataque perpetrado pelo Irã e pelo Hisbolá contra a AMIA em Buenos Aires.