A tradição da tolerância liberal, forjada na Grã-Bretanha, foi uma das maiores dádivas que este país deu ao mundo. Entretanto, essa tradição de inclusão de John Locke e John Stuart Mill, sempre deixa aberta a porta ao abuso de pessoas dispostas a usarem a imperfeição do liberalismo, isso sem falar da tolerância da intolerância, para acabar com o próprio liberalismo.
A Igreja da Inglaterra, em sua época, esteve longe de ser liberal. No século XIX, ela acabou com a carreira e os meios de vida de teólogos liberais de forma resoluta, da mesma maneira que a Igreja de Roma já o tinha feito. Mas no século XX a história mudou. Parcialmente estimulado pela falta de confiança causada pela diminuição no comparecimento à igreja, já no final do século XX, a Igreja da Inglaterra perdeu a reputação de "benquerida do Partido Conservador", para se tornar algo parecido com "benquerida do Partido Liberal". Nenhuma adaptação parecia exagerada demais. Nenhuma dúvida parecia desconcertante demais. Já faz alguns anos que a Igreja da Inglaterra tem sido levada, não graças as, mas apesar das dúvidas, de conhecimento público, constrangedoras, de sua liderança.
A seguir o dilema liberal revelado em apenas um caso nesta semana. O Ex-Bispo de Oxford, Lorde Harries, um homem bondoso e culto, aproveitou um debate na Câmara dos Lordes para propor que na coroação do próximo monarca na Grã-Bretanha sejam talvez incluídos alguns versos do Alcorão.
Seria uma demonstração de "hospitalidade da inclusão", segundo ele, se os muçulmanos da Grã-Bretanha tiverem algumas de suas Escrituras Sagradas lidas na coroação do próximo líder da Igreja da Inglaterra. Isso sinaliza certo grau de alvoroço. Pelo fato de que cortesias desse tipo já são esperadas dos bispos, ainda que, em minha experiência, causam desalento em seu rebanho de outrora.
Porque, é óbvio, o gesto é profundamente desmoralizante para o típico cristão britânico. E é claro, está repleto de erros que devem ser apontados.
Primeiro, é verdade que há muitos muçulmanos na Grã-Bretanha. Também é verdade que alguns muçulmanos ficarão contentes se, em um dia tão importante, versos do Alcorão forem recitados na Abadia de Westminster. Mas também há na Grã-Bretanha muitos hindus e siques. Certo, nenhum membro da comunidade deles se distinguiu ou chamou a atenção do grande público, por exemplo, explodindo um trem de metrô na hora do rush. Mas, naturalmente, será que a leitura de algumas passagens de suas escrituras devem, de qualquer jeito, serem encaixadas? E como fica o preceito que mais cresce na Grã-Bretanha: o ateísmo. Por que não representar céticos e incrédulos com um comentário? Isso sem falar dos judeus, budistas, animistas e os seguidores remanescentes da fé dos druidas. A Grã-Bretanha terá que se preparar para a mais longa cerimônia de coroação já vista.
Segundo, há também a questão de quais passagens do Alcorão deverão ser lidas na próxima coroação do rei. Suponho que não devamos ouvir "mate o infiel onde quer que ele se encontre" e também não as passagens onde se lê, "semeie terror no coração do cético... Decapite-os". Tenho a impressão que essas passagens não farão boa impressão, por assim dizer. A família do soldado decapitado Lee Rigby, sem falar dos trabalhadores de ajuda humanitária decapitados recentemente na Síria, poderão se ofender caso isso aconteça, mesmo que ninguém tenha se manifestado.
Terceiro, é óbvio, incluir passagens do Alcorão na coroação de um monarca é um erro por causa do velho problema da reciprocidade. Não vou me ater à obscenidade de incluir passagens do Alcorão em um dos santuários mais sagrados da cristandade anglicana enquanto nenhum cristão (sem falar de um judeu) pode sequer por os pés em Meca. Mas parece que as coisas são mesmo assim nos anos 2000. Mas vale a pena perguntar porque os muçulmanos britânicos devem ter suas escrituras sagradas representadas na coroação de um novo monarca, se muitos sequer rezam nas mesquitas pelo bem estar do dito monarca. Todas as semanas nas sinagogas do Reino Unido, os judeus britânicos, durante o serviço religioso, rezam para que a rainha tenha vida longa e felicidade. É um momento emocionante e profundo, isso sem falar no claro sinal dado a qualquer cético de que os judeus da Grã-Bretanha são totalmente leais ao país.
Por que então as mesquitas britânicas também não deveriam ter uma reza semelhante? Sempre que falo sobre isso com meus amigos muçulmanos na Grã-Bretanha, os vejo descartarem a ideia como se fosse uma provocação proposital da minha parte apenas ter levantado esse assunto. O que está por trás é que todo mundo sabe que isso seria impossível.
E por que? Se os muçulmanos na Grã-Bretanha quiserem mostrar que são leais à Grã-Bretanha, porque não aprender e seguir o exemplo dos judeus e fazer uma reza nos serviços das sextas-feiras nas terras do reino para a rainha como chefe de estado, líder da Igreja da Inglaterra e chefe das Forças Armadas. Seria um sinal maravilhoso.
Obviamente está a anos luz de acontecer. Muitos imãs britânicos, mesmo se propusessem tal coisa, teriam tumultos em suas mãos. E é nesse ponto que a "hospitalidade da inclusão" do Lorde Harries empaca e não consegue seguir adiante. Porque muitos muçulmanos na Grã-Bretanha simplesmente não compartilham com a bondade, tolerância, inclusão e liberalismo do estimado Lorde Harries. Na realidade, eles admiram muito mais outra fé, que parece estar segura e forte, do que admiram uma religião liderada por pessoas que parecem nem ter tanta fé em sua própria Fé.
Isso por sua vez é outro capítulo em outra parte da tragédia contemporânea britânica. Querendo sempre ser aberta e hospitaleira, o país se sente perdido quando essa hospitalidade não é respeitada nem retribuída. Qual é a resposta? Talvez um pouco mais de bondade, um pouco mais de generosidade, talvez a desistência de mais algumas de nossas estimadas tradições. Acreditamos que isso será suficiente, não?
Bem, talvez teremos versos do Alcorão na próxima coroação. Contudo, o rei que será nesta ocasião coroado não mais presidirá sobre uma nação nominalmente cristã.