O dramático avolumamento da violência entre as facções belicistas no Sudão é só o mais recente exemplo do caos causado no mundo afora pelo deliberado abandono da Administração Biden das suas responsabilidades globais.
E também mostra como, na ausência de uma efetiva liderança americana em assuntos globais, países párias a exemplo da Rússia estão de butuca para preencher o vazio e galgar para o seu nefasto objetivo.
Durante algum tempo a principal causa dos mais recentes distúrbios que atingem Cartum, capital do Sudão, resulta da prolongada rixa entre facções rivais que compõem a junta militar ora no poder, que ninguém se engane quanto ao fato de que a maligna influência do onipresente Grupo Wagner da Rússia desempenha um papel considerável no fomento da violência.
No centro dos distúrbios, que testemunhou governos estrangeiros se acotovelando para lançar missões de resgate para evacuar cidadãos pegos no meio do fogo cruzado, se encontra a amarga rivalidade que apareceu na junta militar comandada pelo general Abdel Fattah al-Burhan e as Forças de Apoio Rápido (RSF), uma força paramilitar independente liderada pelo general Mohamed Hamdan Dagalo, ("Hemedti"), como é mais conhecido.
A RSF é um braço da famigerada milícia Janjaweed do Sudão, responsável por cometer atos de genocídio durante o sangrento Conflito de Darfur na virada do século.
Foi em consequência desses atos de barbárie que o presidente Omar al-Bashir, ex-ditador sudanês, ganhou a malquista distinção de ser o primeiro chefe de estado em exercício a ser acusado de crimes de guerra pelo Tribunal de Haia.
Posteriormente, os Janjaweed se tornaram um elemento-chave na formação da RSF, que desempenharam um papel fundamental no golpe militar que derrubou Bashir em 2019.
A RSF esteve à frente da brutal repressão na pacífica manifestação pró-democracia ocorrida em frente ao quartel-general das forças armadas em Cartum após o golpe, que resultou na morte de centenas de pessoas. A RSF foi novamente envolvida quando um acordo de divisão de poder com políticos que lideraram os protestos contra Bashir com o objetivo de facilitar a transição para um governo democrático foi desbaratado com um novo golpe em outubro de 2021, resultando na morte de mais de 100 manifestantes.
O proeminente papel que a RSF desempenhou em manter os militares no poder em Cartum criou tensões, fazendo com que Hemedti ficasse cada vez mais decepcionado com a sua posição de representante de Burhan. Assim, no mês passado quando Burhan decidiu colocar a milícia sob o controle dos militares sudaneses, Hemedti respondeu lançando a sua própria campanha para assumir o controle da junta, provocando a última rodada de violência que aflige o país.
Além disso, as condições da RSF de fazer a sua própria campanha para assumir o controle do país foi enormemente facilitada pelo apoio recebido do Grupo Wagner, a milícia paramilitar russa que Vladimir Putin usa como seu exército privado.
Documentos recentes publicados pelo Dossier Center, um projeto investigativo criado pelo dissidente russo Mikhail Khodorkovsky, demonstram inequivocamente que o Grupo Wagner é financiado e dirigido por Yevgeny Prigozhin, que por sua vez responde diretamente a Putin.
De uns anos para cá, o Grupo Wagner tem estado particularmente atarefado no Oriente Médio e no Norte da África, para onde foi destacado para concretizar os desejos de Putin no sentido de expandir a influência do Kremlin no Oriente Médio, objetivo este facilitado pela disposição do presidente dos EUA Joe Biden de abandonar a longa presença de Washington na região.
Os mercenários da Wagner desempenharam um importante papel na intervenção militar da Rússia na Síria durante a guerra civil para salvar o regime de Bashar Assad da derrota certa e, mais recentemente, atuaram na Líbia e no Mali como parte do empenho de Putin de expandir a presença de Moscou no Norte da África.
A multiplicação das evidências do envolvimento do Grupo Wagner no Sudão, portanto, não deveria causar espécie, e o seu apoio à RSF está inteiramente alinhado ao compromisso do Kremlin de estabelecer uma rede de novas alianças no continente africano.
O envolvimento do Wagner no Sudão remonta a 2017, quando o grupo foi convidado a ajudar a reforçar a ditadura de Bashir depois que ele visitou Putin em Moscou, onde prometeu tornar o país a "chave para a África".
Desde então, o Grupo Wagner ao que consta teria fornecido extensos volumes de armas e equipamentos ao Sudão, incluindo caminhões militares, veículos anfíbios e helicópteros de transporte. Houve até relatos de que o Grupo Wagner forneceu à RSF mísseis terra-ar para a sua batalha para tomar o controle do estado de Burhan.
O envolvimento do Grupo Wagner com a RSF também conta com importantes implicações econômicas para Moscou. Uma das razões pelas quais a RSF se encontra na posição de desafiar o regime sudanês é o fato dela obter uma enorme riqueza do seu controle sobre a indústria do ouro do país. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia no ano passado, surgiram relatos de que o Grupo Wagner estava ajudando a contrabandear quantidades significativas de ouro para fora do país com o objetivo de ajudar Putin a contornar as sanções internacionais e financiar sua campanha militar. Em troca, Moscou fornece à RSF armas sofisticadas.
Outro marco vital do envolvimento do Grupo Wagner com a RSF é que ele pode ajudar Moscou a concretizar seu ambicioso plano de construir uma base naval em Port Sudan, um empreendimento que daria à marinha russa acesso a uma das principais artérias comerciais do planeta.
Um acordo para construir uma base em Port Sudan foi originalmente acertado quando Bashir ainda estava no poder, mas acabou suspenso por conta do caos que tomou conta do país desde a derrubada do ditador. A RSF ja sinaliza que irá ajudar a retomar o projeto se tiver sucesso na campanha de assumir o controle da junta sudanesa, um avanço que aumentaria, e muito, a ameaça em potencial que Moscou representa para o controle do Canal de Suez e a futura estabilidade do Oriente Médio e da África.
O conflito no Sudão, portanto, não é só uma luta entre facções rivais militares pelo controle do país. Ele também representa uma flagrante cruzada de Moscou em cravar um reduto russo no Mar Vermelho, um objetivo que não teria sido possível sem a disposição de Biden de abandonar a liderança global de Washington.
Con Coughlin é o Redator de Defesa e Relações Exteriores do Telegraph e Distinguished Senior Fellow do Gatestone Institute.