Nos últimos anos, o governo turco intensificou a retórica neo-otomana e a conquista. Em 26 de agosto o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan fez um discurso no qual salientou entre outras coisas: "a Turquia irá tomar o que lhe é de direito no Mar Mediterrâneo, no Mar Egeu e no Mar Negro." Foto: Erdoğan em Ankara em 5 de outubro de 2020. (Foto: Adem Altan/AFP via Getty Images) |
Nos últimos anos, o governo turco intensificou a retórica neo-otomana e a conquista.
Por exemplo, em 26 de agosto o presidente turco Recep Tayyip Erdoğan fez um discurso em um evento para comemorar o 949º aniversário da Batalha de Manzikert. A batalha acabou com a invasão e captura pelos turcos da então cidade de Manzikert na Ásia Central, de maioria armênia, dentro das fronteiras do Império Bizantino.
Trechos de seu discurso foram traduzidos pelo MEMRI [1]:
"Em nossa civilização, conquista não significa ocupação nem saque. Significa assegurar a predominância da justiça que Alá comandou para aquela região (conquistada).
"Em primeiro lugar, a nossa nação tirou a opressão das áreas conquistadas. Estabeleceu a justiça. É por isso que a nossa civilização é de conquistas.
"A Turquia irá tomar o que lhe é de direito no Mar Mediterrâneo, no Mar Egeu e no Mar Negro. Assim como não estamos de olho no solo, na soberania, tampouco nos interesses de ninguém, jamais abriremos mão do que é nosso. Para tanto, estamos determinados a fazer o que for necessário na esfera política, econômica e militar. Exortamos nossos interlocutores a desatarem o nó e não cometerem os equívocos que abrirão caminho para a sua própria destruição."
"Queremos que todos fiquem sabendo que a Turquia não é mais aquele país cuja paciência possa ser posta à prova ou cuja determinação, competência e coragem possam ser testadas. Ao afirmarmos que não mediremos esforços, então não mediremos esforços. Estamos preparados para o que der e vier."
"Caso haja alguém que queira nos confrontar e pagar o preço, que venha. Caso contrário, que cuide da sua vida, que nós cuidaremos da nossa."
"E o que disse a respeito o poeta turco Yahya Kemal? No espírito dos nossos exércitos: 'o irromper da tempestade é o exército turco, oh Senhor! A tropa que morre em seu nome é esta, oh Senhor! Que seu renomado e fortalecido nome seja erguido com os chamamentos para a oração! Faça-nos vencedores, porque este é o derradeiro exército do Islã!'"
Em outro discurso proferido em maio, Erdogan mais uma vez teceu comentários sobre conquistas ao se referir à invasão de Constantinopla pelos turcos otomanos em 1453:
"nossos ancestrais viam a conquista não meramente como captura de territórios, mas também como conquista de corações. De uns tempos para cá, alguns metidos a besta, andam se referindo à conquista como se ela fosse ocupação. Acredite no que eu digo, eles são totalmente ignorantes. Pergunte a eles o que significa conquista e eles não saberão a resposta. Conquistar é abrir (coisas). Conquistar acima de tudo significa cativar corações, mas eles não sabem disso. Há mil anos nossos ancestrais começaram a marcar presença, primeiramente enredando por cada região da Anatólia, Trácia e Bálcãs por meio dos alperens (combatentes), dervixes [2] e de veteranos... Quando o Conquistador (sultão otomano Mehmed II) avançou derrubando as muralhas de Istambul, as damas gregas diziam: 'preferimos ver um turbante otomano em vez da mitra papal sobre nossas cabeças.'"
Um dos maiores problemas da Turquia é o sistemático revisionismo histórico promovido pelo governo e por todas as instituições do país, inclusive a mídia. Há farsas de peso neste revisionismo, particularmente em relação à invasão de Manzikert (Malazgirt) e de Constantinopla (Istambul).
Quando os turcos, liderados pelo sultão Alp Arslan (cujo verdadeiro nome é Muhammad bin Dawud), chegaram em Manzikert no século XI para invadir a região, eles não "conquistaram corações". Muito pelo contrário, cometeram massacres. Manzikert era então uma cidade predominantemente armênia. O massacre "começou no ano de 1019, exatamente há mil anos", escreve o historiador Raymond Ibrahim, "quando os turcos começaram a invadir e transformar uma Armênia então muito maior no que ela é hoje, parte oriental da Turquia moderna."
Conforme destaca Ibrahim, as conquistas não foram alcançadas por meio da "conquista de corações". Elas vieram acompanhadas de violentos massacres de cristãos nativos, cativeiro de mulheres, meninas e meninos e destruição de igrejas.
"O tratamento mais hediondo estava sempre reservado àqueles que proclamavam abertamente o cristianismo: clérigos e monges 'morreram queimados vivos, enquanto outros eram esfolados vivos da cabeça aos pés'. Antes da invasão, Ani era conhecida como a 'cidade das mil e uma igrejas', após a invasão, todos os mosteiros e igrejas foram saqueados, profanados e incendiados. Um devoto jihadista subiu no topo da principal catedral da cidade 'e jogou para baixo a pesada cruz que estava na cúpula,' antes de invadir e profanar a igreja..."
"Baseados não só em inúmeros documentos-fonte cristãos que registraram o saque da capital da Armênia, um documento contemporâneo observa que Maomé 'transformou Ani em deserto por meio de massacres e incêndios', mas também em fontes muçulmanas, muitas vezes em termos apocalípticos: 'eu queria entrar na cidade e ver com meus próprios olhos', explicou um árabe. 'Tentei encontrar uma rua sem ter que pisar em cadáveres. Não tinha como.'"
Outro fato histórico diz respeito às atrocidades cometidas durante a invasão da cidade grega bizantina de Constantinopla pelos turcos otomanos no século XV. A alegação de que as mulheres gregas disseram "preferir os otomanos" não tem um pingo de verdade. Na realidade a cidade caiu após várias semanas de resistência grega. O historiador Mark Cartwright escreve que "os bizantinos estavam em enorme desvantagem numérica quanto a homens, navios e armas".
Quando Constantinopla foi invadida em 29 de maio de 1453, salienta Cartwright, "começaram o estupro, a pilhagem e a destruição."
"Um número incalculável de habitantes da cidade cometeu suicídio para não sofrer os horrores da captura e escravidão. É possível que 4 mil foram mortos de imediato e mais de 50 mil foram embarcados como escravos. Muitos procuraram refúgio em igrejas onde formaram barricadas, inclusive dentro da Hagia Sophia, mas estes eram alvos óbvios por conta dos tesouros. Depois que as joias e metais preciosos foram saqueados, as edificações, símbolos e figuras de valor inestimável destruídos, os apavorados cativos foram massacrados. Incontáveis tesouros de arte foram perdidos, livros foram queimados e qualquer coisa com mensagem cristã foi reduzida a pó, incluindo afrescos e mosaicos."
A queda de Constantinopla pôs um fim ao Império Bizantino, levando à conquista da região pelo Império Otomano. A história dos turcos otomanos também foi em grande medida marcada pela perseguição aos cristãos e a outros não muçulmanos.
O Império Otomano durou cerca de 600 anos (de 1299 a 1923), constituindo regiões da Ásia, Europa e África. Cristãos e judeus sob o domínio otomano se tornaram dhimmis, súditos "tolerados" com status de segunda categoria, que tinham que pagar a jizya, pesada taxa de proteção, para continuarem vivos. Nesse período, conforme o historiador Vasileios Meichanetsidis observa, os turcos se dedicaram a práticas opressoras, tais como:
- "sistema ghulam, no qual não muçulmanos eram escravizados, convertidos e treinados para se tornarem guerreiros e qualificados em assuntos de estado;
- sistema devshirme, recrutamento forçado de meninos cristãos arrancados de suas famílias, convertidos ao Islã e escravizados para servirem ao sultão em seu palácio e também para se juntarem a seus janízaros (novos soldados turcos);
- islamização compulsória e voluntária, a voluntária resultava de pressões sociais, religiosas e econômicas, escravidão sexual de mulheres e meninos ainda pequenos, deportação e massacre."
Muitas crenças turcas sobre a história são, na verdade, o total inverso da verdade histórica. De acordo com o estudo da história turca, por exemplo, o que aconteceu na Turquia otomana em 1915 não foi nenhum genocídio contra os armênios. O Instituto de História da Turquia elaborou um documentário em cinco línguas sobre o que a instituição chama de "rebelião armênia contra o estado otomano, terrorismo e propaganda." O documentário, em conformidade com a forma dos turcos estudarem história, assevera falsamente que foram os armênios que procuraram massacrar os turcos e cometeram outros crimes contra eles e que os turcos agiram somente em legítima defesa. A maioria dos historiadores imparciais, no entanto, concluiu que os eventos de 1915 configuram genocídio contra armênios, assírios e gregos.
O revisionismo que a Turquia adota não é só um insulto às vítimas desses crimes, também é um insulto aos seus descendentes, fora isso uma barreira que impede muitos turcos de desenvolverem um pensamento crítico e uma compreensão dos fatos empíricos. A crença na jihad (guerra santa em nome do Islã), conquista em nome da doutrina islâmica e a desumanização dos kafires (infiéis), ao que tudo indica, desempenha um papel de grande importância na mentalidade supremacista turca e nas aspirações atuais de seus líderes. Por exemplo, em 2016, Numan Kurtulmus, o então vice-primeiro-ministro da Turquia, disse em um encontro público: "independência significa poder se levantar contra os kafires (infiéis) chamando-os de kafires." Em 2018, o presidente do parlamento turco, İsmail Kahraman, chamou a ofensiva militar turca no norte da Síria de "jihad". "Sem a jihad", ressaltou ele, "não haverá progresso." Em meio àquela mesma ofensiva, a Superintendência para Assuntos Religiosos da Turquia (Diyanet) também conclamou a "jihad" e declarou em um sermão semanal que "a luta armada é o mais alto patamar da jihad".
Por conseguinte, muitos turcos ainda glorificam as invasões seljúcidas, otomanas e turcas ao mesmo tempo em que banalizam ou negam totalmente os crimes cometidos. A invasão de Chipre pela Turquia em 1974, por exemplo, foi acompanhada por inúmeros crimes como assassinatos, estupros, torturas, confisco e pilhagem de propriedades e desaparecimentos forçados de cipriotas gregos. Apesar disso tudo, o governo turco, chama oficialmente a invasão de "Operação de Paz no Chipre" e a comemora todos os anos com orgulho.
Discurso de incitamento ao ódio também é amplamente difundido na mídia turca. Segundo um levantamento realizado pela Hrant Dink Foundation, os armênios foram o grupo mais visado pelo discurso de ódio na mídia turca em 2019, seguidos pelos refugiados sírios, gregos e judeus.
Quando massacres e demais atrocidades são sistematicamente chamados de "eventos gloriosos", quando abusos constantes dos direitos humanos, como o encarceramento de prisioneiros políticos pelo regime de Erdogan se tornam incidentes socialmente vistos como lugar-comum, então não deveria causar espécie constatar que a maioria dos turcos não está nem aí em relação às graves violações dos direitos humanos no próprio país, tampouco com a ocupação contínua do norte de Chipre nem da Síria pela Turquia.
Uzay Bulut, jornalista turca, Ilustre Senior Fellow do Gatestone Institute.
[1] Instituto de Pesquisa de Mídia do Oriente Médio
[2] integrantes de uma fraternidade sufista (mística muçulmana)