Ayatollah Ruhollah Khomeini (esquerda) em 1978 e o presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan em 2018. (Imagem: Khomeini - Hulton Archive/Getty Images; Erdogan - Sean Gallup/Getty Images) |
Contemplar a transformação da Turquia durante os últimos 16 anos em uma nação islâmica autoritária tem sido tão apavorante quanto testemunhar a vertiginosa queda do Irã em 1979 - só que em câmera lenta. Ao passo que o Irã passou de aliado secular a implacável inimigo islamista em questão de meses, a Turquia seguiu a mesma trilha, porém liderada por um islamista mais cauteloso, Recep Tayyip Erdogan, que se encaminha a passos bem mais lentos.
Subida ao poder
O Xá Reza Pahlevi do Irã exilou o Ruhollah Khomeini (coincidentemente para a Turquia) em 1964. Quando ele retornou ao Irã em 1º de fevereiro de 1979, Khomeini tomou o poder de forma absoluta quase que de imediato. Visto que o Xá estava fora do país em busca de tratamento para o câncer, não havia praticamente nenhuma resistência para impedir que Khomeini e seus aliados clericais assumissem o poder. A toque de caixa ele criou a Guarda Revolucionária do Irã (IRGC), que logo iria superar a SAVAK, polícia secreta do Xá, no que tange em sufocar os inimigos internos. A execrável prisão Evin da SAVAK, que chegou a confinar cerca de 5 mil inimigos políticos do Xá, logo passou a encarcerar mais de 15 mil detentos de Khomeini. Em questão de semanas, Khomeini comandava um reinado de terror que extasiaria o próprio Robespierre.
A queda da Turquia nos braços do islamismo, por outro lado, tem sido muito mais lenta, guiada deliberada e gradualmente por Recep Tayyip Erdogan por meio de uma série de eleições. Talvez ele tenha aprendido com seu tropeço em 1998 a dar passos mais lentos, tendo em vista que quando era prefeito de Istambul, reuniu seus correligionários e declarou: "as mesquitas são nossos quartéis, as cúpulas nossos capacetes, os minaretes nossas baionetas e os fiéis nossos soldados." Como resultado, Erdogan foi condenado por incitar o ódio a uma pena de 10 meses de prisão e proibido de ocupar cargos públicos.
Erdogan, no entanto, não estava disposto a desistir. Ele fundou um partido político chamado Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), que deu uma lavada nas eleições de 2002. Logo a proibição que o atingia foi suspensa e seu retorno com plenos direitos se concretizou ao se tornar primeiro-ministro em março de 2003.
Erdogan avançou cautelosamente a princípio, evoluindo ocasionalmente em direção dos islamistas, como por exemplo confiscando igrejas cristãs, mudando as leis do hijab (véu islâmico) e perseguindo os muçulmanos não sunitas. Na sequência, dois importantes acontecimentos deram a ele a oportunidade de conquistar mais poder: a guerra civil na Síria em 2011 e o fracassado hipotético golpe contra ele em 2016. Conforme expôs Daniel Pipes em 2016:
"Após anos de moderação e austeridade, sua verdadeira personalidade, grandiloquente, islamista e agressiva, deu o ar da graça. Agora ele quer governar como déspota."
Erdogan disse certa vez que "a democracia é como um bonde. Você viaja nele até chegar ao seu destino, depois você desembarca. "Parece que Erdogan chegou ao seu destino.
Eliminando Reformas
No Irã, no momento em que Ruhollah Khomeini saiu do avião vindo da França (onde passou os últimos anos de exílio), começou a trabalhar para eliminar o secularismo que o Xá alcançara durante décadas de ocidentalização do país. A assim chamada "Revolução Branca" do Xá, iniciada a mando da Administração Kennedy em janeiro de 1963, era um programa de reformas que estabeleceu cotas para que minorias e mulheres pudessem ocupar cargos no governo, o programa transferia terras aos agricultores que trabalhavam nelas e abraçava tudo o que era ocidental e moderno. Em 1967, a Lei de Proteção à Família permitiu que as mulheres pedissem judicialmente o divórcio, obtivessem a guarda dos filhos e negassem aos maridos o direito de ter várias esposas. A lei também aboliu o "casamento temporário" (uma autorização religiosa xiita para a prostituição) e aumentou a idade mínima para o casamento de nove (que segue o exemplo do profeta Maomé) para quinze anos.
Khomeini vilipendiou o programa de ocidentalização do Xá classificando-o como "Westoxication"(traduzido do persagharbzadegi, termo pejorativo para o vocábulo 'ocidentalizado'). Em vez do gigante tecnológico disposto a dividir os frutos da modernidade com seu aliado anticomunista do terceiro mundo, os EUA se tornaram o "grande Satã", que segundo um pressuposto impõe seu secularismo ao Irã e destrói a cultura islâmica do país.
Na Turquia, Erdogan reduziu lenta e gradualmente as liberdades dos cidadãos. Assim como Khomeini, ele também queria cancelar em seu país o programa de ocidentalização de seus antecessores. Outrora a Turquia se distinguia do restante do mundo muçulmano devido em grande parte ao reformador de nome Mustafa Kamal, general turco que tomou o poder após a derrota do Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. Ele adotou o nome Ataturk ("pai dos turcos"), aboliu oficialmente (embora simbolicamente) o Califado Islâmico em 1924 e começou o processo de secularização e ocidentalização da Turquia. Por quase 70 anos, a Turquia parecia estar imune ao islamismo. Agora, ao que tudo indica, essa imunidade é ilusória.
Após se tornar primeiro-ministro, Erdogan começou a carcomer o sistema de Ataturk. Como presidente, ele o esfarelou. Os outrora poderosos militares turcos foram expurgados da sua independência. Os direitos das minorias, especialmente os dos cristãos, encolheram drasticamente. Erdogan se empenhou em fechar igrejas e construir mesquitas. A imprensa não é mais livre e o mundo acadêmico turco é uma sombra do que costumava ser.
Governança
Qualquer islamista que queira governar tem que encontrar um meio de racionalizar o decreto islâmico segundo o qual "Alá não tem parceiros". Em 1991 Ayman al-Zawahiri (o atual líder da Al-Qaeda) criticou a Irmandade Muçulmana por ela participar dos processos de democratização do Egito, ele concluiu:
"No frigir dos ovos, em relação às democracias, a questão é que o direito de introduzir leis é dado a alguém que não é o Altíssimo Alá. A democracia é assim mesmo. De modo que, quem concordar com isso é infiel, pois adora outros deuses em vez de Alá ".
A versão xiita desta proibição dita que ninguém tem o direito de governar enquanto o Décimo Segundo Imã Oculto continuar oculto e qualquer tentativa de governar é profana.
A solução encontrada por Khomeini foi a de criar ovaleyat-e-faqih, geralmente traduzido como "governança da jurisprudência". Esse arranjo colocou a governança do dia a dia diretamente nas mãos dos clérigos, cuja adesão fervorosa à Sharia protegeu o regime da acusação de "fazer parceria com Alá" como se fosse em uma redoma. Eles não estavam na realidade governando, essa era a explicação, estavam apenas mantendo uma vigilância piedosa sobre as coisas até que o Décimo Segundo Imã saia do esconderijo.
Para vigiar os 'vigiadores', Khomeini se autonomeou Rahbar("Líder Supremo"). Fazendo se passar por sábio, ele era apenas mais um ditador que descobriu um jeito de engambelar e ameaçar a população.
A gradual tomada de poder de Erdogan foi realizada fazendo uso do processo democrático viabilizado pelas reformas de Ataturk. Não chega a ser o temido "um homem, um voto, uma vez", mas a cada vitória eleitoral que Erdogan conquistava, ele se tornava mais autoritário e mais islamista. Após a alegada tentativa de golpe em 2016, ele se assenhorou de mais poder ainda. As vitórias apertadas de Erdogan no referendo constitucional de 2017 e na eleição presidencial de 2018 permitiram que ele mudasse e ignorasse a constituição por meio da qual ele foi alçado ao poder, tornando-o o Khomeini da Turquia. Agora que Erdogan não precisa mais se arriscar a perder eleições nas urnas eleitorais, atente por eleições fraudadas, ele irá vencer com margens a lá Arafat.
Política Externa
A meta da política externa de Khomeini era bem simples: expandir a influência do Irã, disseminar sua versão do islamismo e combater tudo aquilo que for Ocidental.
A política externa de Erdogan também era hostil ao Ocidente desde o início, mesmo antes dele se tornar primeiro-ministro em 2003. No período pós-11 de setembro até a decisão do governo Bush de atacar Saddam Hussein, a Turquia negociou com os EUA a entrada de um adicional de 62 mil soldados que comporiam as forças que avançariam no território iraquiano pelo norte. Foi fechado um acordo que beneficiaria a Turquia com US$6 bilhões em ajuda direta além de garantias adicionais de empréstimos de outros bilhões. Contudo, depois que o partido de Erdogan, AKP, passou a controlar 60% do parlamento nas eleições de novembro de 2002, ele exerceu influência o bastante para anular o acordo.
Como primeiro-ministro e depois como presidente da Turquia, as políticas de Erdogan foram se tornando cada vez mais hostis aos interesses dos EUA. Ele promoveu a Flotilha de Gaza, ajudou o Irã a transportar armas para a Síria e lutou contra os curdos aliados dos Estados Unidos. Ele não só popularizou, talvez até tenha inventado a saudação de quatro dedos da Irmandade Muçulmana, mas também abraçou seu modelo de islamismo.
Reféns
O mais problemático de todos os paralelos entre Erdogan e Khomeini é a nova inclinação turca pela tomada de reféns. Em 4 de novembro de 1979 as forças de Khomeini tomaram a embaixada dos EUA em Teerã e mantiveram 52 funcionários da embaixada, diplomatas e civis como reféns por 444 dias. Após sua libertação, Khomeini continuou sequestrando americanos, principalmente por intermédio de grupos terroristas.
O termo que muitos adotaram para descrever o último escorregão de Erdogan para a esfera do khomeinismo é a "diplomacia de reféns". O pastor americano Andrew Brunson foi feito refém em 7 de outubro de 2016 e tem sido usado como moeda de troca segundo a versão de diplomacia de Erdogan desde então. De acordo com o regime islamista, agora seguro de si, Brunson , acusado de "cristianização" não é o único cidadão americano detido na Turquia.
O que ainda está por vir?
Poder-se-ia dizer que os EUA ignoraram por décadas a fio o perigo que a queda do Xá representava e a subsequente ascensão do islamismo xiita como uma força política, porém diante desse fato consumado, o Irã foi rápido enquanto durou o mandato de um presidente fraco que nada fez no sentido de ajudar o Xá que, a bem da verdade, apressou sua queda. Quando Jimmy Carter percebeu o quão tolo ele foi em abandonar o Xá, já era tarde demais. Mas os EUA dispunham de tempo mais do que suficiente, além de alertas mais do que suficientes para conferirem o que estava por vir na Turquia sob o comando de Erdogan. Agora que a câmera lenta chega ao fim e começa a aceleração, nada a não ser um golpe militar bem sucedido poderá impedir que Erdogan se torne outro Khomeini de cabo a rabo.
Felizmente, não estamos em 1979 e ainda é possível aprender com as lições daquele ano sombrio. Muitos estão começando a reconsiderar a participação da Turquia na OTAN. Lamentavelmente não há mecanismo para se expulsar membros da OTAN, mas também não há razão para manter dezenas de ogivas nucleares tácticas B61 na Base Aérea de Incirlik na Turquia. Embora as ogivas nucleares (a Turquia não dispõe de aviões em condições de utilizá-las) estejam seguras em arsenais subterrâneos e protegidas por desnecessários protocolos de código de lançamento se essas ogivas forem confiscadas, mesmo assim representam uma enorme ameaça.
Imagine como seria o mundo se os EUA tivessem armazenado armas nucleares no Irã antes da tomada de poder de Khomeini. Imagine como será o mundo se Erdogan se apoderar das armas nucleares dos Estados Unidos.
A.J. Caschetta é membro do Ginsburg-Ingerman do Middle East Forum e o principal conferencista do Rochester Institute of Technology.