Os curdos têm o seguinte provérbio: "não temos amigos, exceto as montanhas". Em Afrin, no entanto, nem as montanhas conseguiram protegê-los dos caças turcos e das milícias islâmicas aliadas de Ancara. Embora os vídeos de horripilantes execuções não sejam de maneira alguma algo novo na trágica guerra da Síria, neste caso em particular, o vídeo foi gravado por um grupo terrorista operando sob o comando de um país pertencente à OTAN, a Turquia.
O vídeo mostra integrantes das milícias sírias abusando do corpo de Amina Omar, combatente curda também conhecida como "Barin Kobani". Ela foi morta defendendo Afrin, cidade cantão na Síria atacada pelo exército turco de Recep Tayyip Erdogan.
No vídeo, Omar, que pertencia à unidade feminina das Unidades de Proteção Popular (YPG), é chamada de "porca" enquanto um soldado pisoteia seus seios. A profanação de seu cadáver acabou simbolizando não apenas a ferocidade dos inimigos dos curdos, mas também a sensação de uma enorme e insuportável traição moral e política sofrida pelos curdos nas mãos de seus aliados ocidentais.
"Vergonha: o Ocidente está fazendo vista grossa no tocante ao destino dos curdos", salientou Ivan Rioufol do jornal Le Figaro da França. "Eles lutaram ao nosso lado na guerra contra o Estado Islâmico. Erdogan rotula de 'terrorista' esse pequeno povo que arma as mulheres, que têm seus cabelos ao vento e que deixam a religião na esfera privada".
A mídia ocidental ignorou o destino dos curdos, povo que derrotou o Estado Islâmico por nós.
"Minha irmã Barin lutou ao lado da coalizão em Raca contra o Estado Islâmico e em outros lugares", ressaltou o irmão de Omar ao jornal The Times diretamente da cidade de Kobane. "Como pode haver justiça ou confiança entre aliados se a coalizão coloca seus interesses acima da moralidade e permite que a Turquia nos ataque e ainda por cima com armas da OTAN?"
Foto: combatentes femininas das Unidades de Proteção Popular (YPG) perto da cidade de Kobane na Síria, em 20 de junho de 2015. (Foto: Ahmet Sik/Getty Images) |
Houve um "silêncio ensurdecedor" da maioria dos líderes ocidentais sobre o sofrimento dos curdos diante da invasão ilegal turca, realçou Sandeep Gopalan, professor de direito da Universidade Deakin em Melbourne. Todas as chancelarias europeias abandonaram os curdos à sua própria sorte.
Basta pensar no seguinte: o Ministro das Relações Exteriores do Reino Unido Boris Johnson tuitou "a Turquia está certa em querer proteger suas fronteiras". O Ocidente deu aos turcos sinal verde para massacrarem os curdos.
Pior do que isso, um apelo publicado pelo New York Review of Books nos lembra:
"o ataque turco contra Afrin não teve a mínima provocação. Na realidade Afrin era tão pacífica durante a maior parte da guerra síria que se tornou um porto seguro para dezenas de milhares de refugiados, alguns dos quais são agora refugiados pela segunda vez. Nos cantões sob seu controle, as forças lideradas pelos curdos tinham estabelecido um oásis, único na Síria, de um autogoverno local: direitos das mulheres e leis seculares".
A batalha de Afrin foi uma terrível derrota para os curdos na Síria, derrota esta com consequências estarrecedoras. Pelo menos 820 combatentes curdos foram mortos em ação. Muitas outras mortes ainda estão por serem confirmadas. A título de comparação, 660 curdos foram mortos lutando sob a bandeira das Forças Democráticas da Síria, apoiadas pelos Estados Unidos na batalha para libertar Raca, a capital síria de fato, do Califado do ISIS.
Robert Ellis comparou Afrin aos Sudetos da década de 1930:
"Dois dias antes de ceder os Sudetos à Alemanha nazista em Munique em setembro de 1938, o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain descartou a questão como 'uma rixa em um país distante entre povos sobre os quais nada sabemos'. É bem isso que pode ser dito sobre a atitude do Ocidente em relação aos ataques da Turquia contra o enclave curdo em Afrin no noroeste da Síria".
Na madrugada de 30 de setembro de 1938, a Grã-Bretanha, França e Itália permitiram que os nazistas anexassem o território dos Sudetos, região da Tchecoslováquia. O governo tcheco se opôs e resistiu, mas seus aliados ocidentais, determinados a evitar a guerra "a qualquer custo", estavam dispostos a negociar com Adolf Hitler. O Acordo de Munique, no entanto, não trouxe paz à Europa, trouxe a guerra.
Assim como os tchecos foram sacrificados em vão, o Ocidente traiu os curdos três vezes nos últimos três anos. A primeira vez em Kobane, a cidade curda cercada na fronteira com a Turquia onde em uma batalha que somente "revelou a impotência do Ocidente em face da jihad radical", os habitantes lutaram para evitar a morte certa sob o domínio do ISIS. Depois de Kobane os curdos foram abandonados durante o referendo pela independência do Iraque em setembro passado. Agora eles foram traídos em Afrin, cantão sírio onde inúmeras minorias da guerra síria se refugiaram.
Quando no final de 2014 o Ocidente decidiu intervir diretamente para se livrar do Califado do ISIS, ele se deparou com um flagrante problema. Como o Ocidente iria derrotar os islamistas, já que não estamos mais dispostos a arriscar nossas tropas no palco dos acontecimentos? Através dos curdos. Foram as forças curdas que prestaram os primeiros socorros aos yazidis que fugiam do genocídio do ISIS. Milhares de yazidis acabaram em valas comuns ou foram capturados e escravizados sexualmente. Foi quando a Alemanha começou a enviar armas para os curdos. Agora os yazidis em Afrin estão sofrendo uma nova onda de perseguições dos aliados turcos.
Bernard-Henri Lévy, filósofo francês, ressaltou recentemente ao Le Figaro:
"A tragédia pela qual os curdos estão passando é sinal de um enfraquecimento sem precedentes do Ocidente. Será o equivalente à batalha de Adrianópolis que precedeu a queda de Roma? Espero que não. Mas a atitude de jogar a toalha tem sido uma enorme desgraça. Um desses microeventos aparentemente anormais que sinalizam uma mudança no mundo. Esta não é a primeira vez que o Ocidente deixa na mão seus aliados e nações irmãs. Foi o caso durante a ascensão do nazismo. E na sequência o abandono da metade da Europa para o comunismo".
Os curdos foram nossos aliados ideais. Eles abriram suas cidades, como Erbil, para dezenas de milhares de cristãos iraquianos expulsos de Mossul pelo ISIS. O Curdistão iraquiano é hoje o único lugar no Oriente Médio, juntamente com o Estado de Israel, que abriga e protege todas as religiões e minorias. Segundo o ex-parlamentar europeu Paulo Casaca, o governo regional curdo mostrou o maior respeito por todas as minorias que foram perseguidas sem trégua, em outras regiões do Iraque.
Um apelo assinado pelos intelectuais franceses Pascal Bruckner, Bernard Kouchner e Stephane Breton assinala:
"Abandoná-los seria um erro moral imperdoável. Os curdos da Síria derrotaram os islamistas que causaram os piores ataques da nossa história. As atrocidades turco-islamistas em Afrin não prometem nada de bom. Quando jovens combatentes curdos, de admirável coragem, são capturados pelos jihadistas, eles são torturados, estripados e retalhados. Esta barbárie é insustentável. Os curdos são, além de tudo, nossos únicos aliados na região e demonstraram sua eficiência no campo de batalha. Se os abandonarmos não sobrará ninguém para nos ajudar a conter novas explosões terroristas desfechadas contra nós mesmos. Por último, os curdos da Síria estão construindo uma sociedade democrática que respeita o pluralismo étnico e confessional e a igualdade entre homens e mulheres. Isso terá uma profunda influência em uma região dilacerada pela tirania".
Uma nova "Síndrome de Munique" já está tomando forma no horizonte do Ocidente. Os curdos, se não mereciam um estado, eram no mínimo dignos da nossa proteção, especialmente depois de nos ajudarem a dar um basta naqueles que cortam nossas gargantas nos bulevares de Paris.
Giulio Meotti, Editor Cultural do diário Il Foglio, é jornalista e escritor italiano.