Pergunta: o que os pacientes palestinos fazem para obter autorização para receber tratamento médico em Israel e em outros hospitais ao redor do mundo? Resposta: pagam propina a funcionários da alta hierarquia palestina na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Aqueles que não têm como pagar a propina são abandonados à própria sorte, amontoados, em hospitais mal equipados, falta de pessoal, principalmente na Faixa de Gaza.
No entanto, ao que tudo indica, uns palestinos são mais iguais do que os outros: aqueles palestinos cujas vidas não correm perigo, mas que só fazem de conta. São eles: empresários, comerciantes, estudantes universitários e parentes de altos funcionários da Autoridade Palestina (AP) e do Hamas, que recebem autorização para viajar para Israel e para outros países sob o pretexto de emergência médica.
Inúmeros palestinos apontam o dedo para o Ministério da Saúde da AP na Cisjordânia. Eles ressaltam que funcionários do alto escalão do ministério têm abusado de seus poderes em troca de propina de pacientes genuínos e de palestinos que querem apenas a licença médica para saírem da Faixa de Gaza ou da Cisjordânia. Graças à corrupção, a inúmeros pacientes reais foram negadas a oportunidade de receber tratamento médico adequado tanto em Israel quanto em outros países.
Palestino sendo levado a uma ambulância israelense no posto de fronteira de Erez entre a Faixa de Gaza e Israel a caminho de um hospital israelense, 29 de julho de 2014. (imagem: Ministério das Relações Exteriores de Israel) |
Isto, claro, não se aplica aos altos funcionários palestinos e seus familiares, que continuam a fazer uso irrestrito de hospitais israelenses e de outros centros médicos na Jordânia, Egito, países do Golfo e da Europa.
Até mesmo altos funcionários do Hamas desfrutam do acesso a hospitais israelenses. Em 2013, Amal Haniyeh, neta do líder do Hamas Ismail Haniyeh, foi transferida para um hospital israelense para tratamento médico urgente. Um ano antes, a irmã de Haniyeh, Suheilah, também foi levada a um hospital israelense para uma urgente cirurgia cardíaca.
Haniyeh, no entanto, não teve que pagar propina para que sua filha e irmã recebessem tratamento médico em Israel. Com efeito, alguns palestinos são evidentemente muito mais iguais que outros.
A corrupção no sistema de saúde palestino, tanto na Cisjordânia quanto na Faixa de Gaza, tem sido um segredo bem conhecido. Os palestinos que não desfrutam dos contatos certos e sem o dinheiro necessário para entregar a um alto funcionário ou médico estão plenamente conscientes de que eles jamais receberão a autorização das assim chamadas "referências médicas no exterior". A assinatura de um médico ou de um funcionário da alta hierarquia do sistema de saúde é a mercadoria mais preciosa existente na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. A assinatura permite que os pacientes recebam tratamento médico gratuito em Israel e em vários outros países.
A falta de regras claras que definam quem tem direito a esse privilégio tem facilitado a corrupção generalizada no sistema de saúde palestino. O nepotismo desempenha um papel importantíssimo nesse tipo de corrupção. O parente de um alto funcionário palestino pode facilmente ser transferido para tratamento em um hospital israelense, jordaniano ou egípcio, ao passo que pacientes da Faixa de Gaza sem recursos podem ter que esperar meses e até anos até que possam obter tais autorizações.
Funcionários do Hamas e da AP estão fazendo negócios com a vida dos pacientes palestinos. Eles transformaram o atendimento médico em um comércio que rende centenas de milhares de dólares por ano. Esta corrupção, que avança na ausência de transparência e de prestação de contas, permitiu também a altos funcionários da Cisjordânia e Faixa de Gaza desviarem milhões de shekels do orçamento da AP.
Apesar da promessa da Autoridade Palestina e do Hamas de combaterem a exploração de pacientes palestinos, os próprios palestinos não sentiram nenhuma melhora. Eles dizem que mais de 70% dos casos de encaminhamentos médicos a hospitais israelenses e ao exterior não constam dos registros e que ainda não está claro como e onde o dinheiro foi gasto.
Por exemplo, em 2013 a AP gastou mais de meio bilhão de shekels para cobrir despesas médicas de palestinos que foram encaminhados a hospitais fora dos territórios palestinos. No entanto, ninguém sabe exatamente como o dinheiro foi gasto e se todos aqueles que receberam a documentação para o encaminhamento de fato precisavam de tratamento médico.
A AP sustenta que em 2014 mais de 54.000 palestinos de Gaza obtiveram a papelada necessária para os encaminhamentos médicos de tratamento fora da Faixa de Gaza. As autoridades responsáveis pela saúde na Faixa de Gaza, no entanto, dizem que eles estão cientes de apenas 16.382 casos documentados de pacientes reais que receberam as autorizações.
Entre 1994 e 2013 a Autoridade Palestina não solicitou as notas fiscais discriminadas dos hospitais israelenses dos tratamento médicos ministrados aos pacientes palestinos. Os valores são deduzidos mensalmente das receitas cobradas por Israel e depois transferidos para a AP
A Coligação para a Prestação de Contas e Integridade (AMAN), um grupo palestino que atua na esfera da democracia, direitos humanos e boa governança para combater a corrupção e melhorar a integridade, os princípios de transparência e sistemas de prestação de contas na sociedade palestina, é um dos poucos órgãos que estão soando o alarme no tocante a esse abuso.
No ano passado a AMAN divulgou uma denúncia na qual alertava sobre a corrupção no Departamento de Referências Médicas no Exterior, subordinado ao Ministério da saúde da AP. A denúncia apontou discrepâncias nos custos de tratamento médico em Israel e em outros hospitais e os valores pagos. Por exemplo, em um caso verificou-se que 113 pacientes palestinos tinham dado entrada em hospitais israelenses ao custo de 3 milhões de shekels, no entanto não há nenhuma documentação dessas internações. Até as identidades dos pacientes continuam envoltas em mistério.
A denúncia da AMAN afirma que as medidas tomadas pelas autoridades responsáveis pela saúde dos palestinos no sentido de limitar o nepotismo e as propinas e evitar o desperdício de dinheiro público, foram insuficientes. Os médicos, de acordo com a denúncia, enfrentam pressão de funcionários da Autoridade Palestina para que emitam a documentação médica requerida pelos hospitais israelenses e outros hospitais ao redor do mundo, mesmo para os pacientes que não precisam daquela internação. Em determinados casos, assinala a denúncia, os pacientes podiam ter sido tratados em hospitais palestinos, não havendo a necessidade de transferi-los para outros hospitais a custos tão elevados.
A AP assinala que pediu à Comissão Anticorrupção que investigue o escândalo. Até a presente data ainda não está claro se foram tomadas as medidas necessárias contra os responsáveis pela corrupção.
O Hamas por sua vez continua responsabilizando a AP pelo sofrimento dos pacientes na Faixa de Gaza. O movimento islamista afirma que o governo da AP está retendo a emissão de licenças médicas como meio de punir os palestinos por seu apoio ao Hamas.
Na realidade, o que acontece não é bem isso: determinadas autoridades responsáveis pela saúde na Faixa de Gaza ligadas ao Hamas também têm explorado o sofrimento dos pacientes. O Hamas não tem interesse que isso venha à tona.
Hajer Harb, uma corajosa jornalista palestina da Faixa de Gaza, recentemente elaborou uma reportagem investigativa sobre a corrupção de funcionários da saúde na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Ela vem sendo recorrentemente interrogada pelo Hamas.
Harb assinala que ela já está enfrentando acusações de "difamação" por expor a corrupção. Ela foi informada por seus interrogadores que a decisão de intimá-la para investigação veio depois que um médico na Faixa de Gaza apresentou uma queixa de "difamação" contra ela.
Os interrogadores do Hamas exigiam que Harb revelasse suas fontes e a identidade das pessoas envolvidas no escândalo de corrupção. "Eu disse a eles que sou jornalista e não posso fornecer as identidades das minhas fontes sem ordem judicial".
"Os promotores disseram que as seguintes acusações pesavam contra mim: crime de falsa identidade (eles alegam que não revelei minha verdadeira identidade na reportagem investigativa), difamar o Ministério da Saúde devido à publicação de informações imprecisas e incorretas e trabalhar com 'agentes estrangeiros' (ao elaborar uma denúncia para uma rede de TV radicada em Londres, sob o pretexto de que a empresa jornalística não está registrada na Assessoria de Imprensa na Faixa de Gaza)".
Em sua denúncia, Harb mencionou os intermediários que conseguem obter a documentação médica necessária para a internação em hospitais israelenses e estrangeiros em troca de propina. Ela se aproximou de um dos intermediários alegando que queria viajar da Faixa de Gaza para a Cisjordânia para se casar com alguém de lá. Ela escreveu que recebeu uma autorização para sair da Faixa de Gaza para se submeter a um tratamento médico no Hospital Al-Makassed em Jerusalém Oriental, em troca de propina paga a um médico local. Ela também descobriu uma série de documentos médicos forjados em nome do filho de um alto funcionário palestino da Faixa de Gaza, que os obteve para completar os estudos na Cisjordânia. Mais tarde Harb localizou um homem que afirmou trabalhar para o Serviço de Segurança Preventiva da AP e se vangloriava que conseguiria uma autorização para tratamento médico fora da Faixa de Gaza por US$200. Outro palestino comprou uma licença médica para deixar a Faixa de Gaza e trabalhar em um restaurante em Ramala.
O Hamas afirma estar combatendo a corrupção de funcionários que estão complicando a vida dos pacientes palestinos. Na realidade o Hamas está é ocupado assediando jornalistas que expõem a verdade. O regime da Autoridade Palestina, de sua parte, não está nada contente com o fato do vazamento ter vindo à tona.
O Sindicato dos Jornalistas Palestinos (PJS), com sede na Cisjordânia, condenou o Hamas por assediar Harb. Mas a crítica deve ser vista mais no contexto da luta pelo poder entre a AP e o Hamas e não decorrente da preocupação em relação às liberdades públicas.
Em um comunicado, o PJS criticou o Hamas por interrogar Harb classificando-a como uma "grave violação ao trabalho da mídia e liberdade de expressão" nos territórios palestinos. O sindicato enfatizou o direito dos jornalistas de não revelarem a identidade de suas fontes, acrescentando que Harb respeitou todas as normas morais, legais e profissionais.
Najat Abu Baker, membro do Conselho Legislativo Palestino subordinado à facção da Fatah da AP do Presidente Mahmoud Abbas, foi uma das poucas políticas da Cisjordânia que se atreveu a se manifestar abertamente contra o escândalo da corrupção.
Segundo ela a corrupção no Departamento de Referências Médicas da AP transformou-o em uma "verdadeira máfia chefiada por figuras influentes". Abu Baker acusou o ministério de explorar os residentes mais humildes da Faixa de Gaza além de desperdiçar recursos públicos:
"A questão das licenças médicas virou um comércio e os únicos que estão pagando caro são os pacientes da Faixa de Gaza. As centenas de pacientes que morreram foram vítimas das medidas do ministério".
Ela exigiu a formação de uma Comissão de Inquérito para investigar o escândalo da corrupção. Ela ressaltou que muitos pacientes da Faixa de Gaza morreram enquanto aguardavam documentação médica necessária para a internação, ao passo que a outros que não estavam doentes, foram dadas as licenças graças ao nepotismo e à propina.
"Os mercadores da morte estão brincando com o destino de nossos pacientes. Já está na hora de dizer a verdade para que possamos nos livrar da máfia da destruição e acabar com o comércio da vida de nossos pacientes".
O escândalo das licenças médicas é mais uma prova de que tanto o Hamas quanto a Autoridade Palestina exploram descaradamente seu povo para fins políticos e financeiros. A AP usa seu poder para emitir licenças médicas a fim de pressionar os palestinos da Faixa de Gaza contra o Hamas. Seus funcionários vendem as licenças por dinheiro vivo. O Hamas, que continua mantendo toda a Faixa de Gaza como refém, tem suas próprias ideias sobre o bom uso de seu dinheiro. Os hospitais de Gaza estariam melhor equipados se o Hamas usasse o dinheiro ao seu dispor na construção de centros médicos em vez de túneis para contrabandear armas do Egito para atacar Israel. Enquanto licenças médicas são vendidas pelo lance palestino mais alto, perguntamos: qual é o preço de uma licença para fins de esclarecimento em relação ao comportamento dos líderes palestinos?
Khaled Abu Toameh é um jornalista premiado radicado em Jerusalém.