A cada ano, a Universidade da Califórnia apresenta uma palestra em homenagem a Mario Savio. Em 2 de dezembro de 1964, Mario Sávio estava parado nas escadarias do Sproul Hall de Berkeley, quando começou um discurso não ensaiado, considerado por muitos um dos 100 melhores do século. O discurso faria dele a voz do que viria a ser chamado de Movimento da Liberdade de Expressão.
Por toda Berkeley, o Movimento da Liberdade de Expressão (MLE) representou, em grande parte, a identidade histórica e cultural de Berkeley.
O Movimento da Liberdade de Expressão parece ter evoluído na contramão, à mercê de uma censura imposta ou autocensura, disfarçada de correção política. É uma ideologia que ativa a sensibilidade dos sentimentos em relação aos direitos fundamentais daqueles que foram "previamente excluídos".
A tensão entre o que o MLE era e no que se transformou chegou a um clímax nos conflitos mais recentes de Berkeley quanto ao papel da liberdade de expressão. O conflito surgiu por causa de um convite à personalidade da televisão Bill Maher para que discursasse para os formandos nesse mês de dezembro.
Maher não está desabituado às controvérsias políticas. Ironicamente, são as posições polêmicas de Maher que, sem a menor sombra de dúvida, levaram ao convite. A cerimônia de entrega de diplomas em 20 de dezembro também irá celebrar o 50º aniversário do MLE.
No início de outubro, durante seu programa Real Time, Maher disse que os liberais apóiam os direitos dos gays, lésbicas e mulheres, mas se recusam a defender esses direitos, quando apoiá-los também significa criticar aspectos do Islã.
Em uma discussão acalorada com o ator Ben Affleck, Maher disse que a razão pela qual não ouvimos nada dos muçulmanos moderados é porque eles têm medo de se manifestarem e que o Islã é a única religião que age como a Máfia. (Ele não abrandou seu comentário). Maher continuou dizendo que os muçulmanos radicais não são simplesmente um grupo de desajustados e, que de acordo com uma pesquisa do Centro de Pesquisas Pew cerca de 90% dos muçulmanos no Egito acreditam que a morte é a punição adequada para a prática da apostasia.
A "liberdade de expressão" de Maher foi demais, ao que tudo indica, para os grupos de estudantes muçulmanos organizados de Berkeley. Eles formularam uma petição para rescindir o convite a Maher. Embora Maher tenha sido atacado por considerar todos os muçulmanos farinha do mesmo saco, qualquer um que se dispusesse a assistir cerca de dez minutos do segmento do programa veria o óbvio: Maher foi muito cauteloso e fez questão de dizer que ele estava censurando ideias e somente aqueles que abraçavam essas ideias, não todos os muçulmanos.
Ao que tudo indica, ninguém se apresentou para rebater a alusão de Maher quanto à pesquisa do Centro de Pesquisas Pew ou de lembrar aos estudantes que apóstatas como o ativista de direitos humanos Ayaan Hirsi Ali precisam de proteção 24 horas por dia para se protegerem dos muçulmanos radicais.
Por exemplo, se 90% dos brasileiros acreditassem que aquele que deixar a fé cristã deveria ser condenado à morte, com certeza essa maneira de ver as coisas provocaria críticas legítimas em relação à teologia que implantou essas ideias. Afinal de contas não somos nós americanos, constantemente instigados a olharmos para dentro de nós mesmos e vermos as consequências para os outros das nossas crenças e atitudes?
Ironicamente, é justamente esse o tema do curso sobre islamofobia do consagrado conferencista de Berkeley, Hatem Bazian. O curso foca em como os americanos, de maneira indiscriminada, consideram os muçulmanos como "os outros".
Bazian está à frente do movimento que tem como objetivo impedir que Maher discurse no campus. Entretanto, o próprio Bazian não quer nenhuma restrição quando é a vez dele discursar. Em um comício contra a guerra em São Francisco em 2004, ele fez uma conclamação em prol de uma intifada americana (insurreição violenta). Durante o evento, Bazian disse, "...estamos aqui sentados vendo o mundo passar diante de nossos olhos, pessoas sendo atacadas, já não era sem tempo de termos uma intifada nesse país que mude fundamentalmente a dinâmica política por aqui". Ele continuou, afirmando, "eles dirão, mais um palestino sendo radical demais, bem, vocês ainda não viram o que é radicalismo"!
Bazian é o fundador do grupo Estudantes para a Justiça na Palestina, que a Liga Anti-Difamação chama de antissemita. Ele dá palestras sobre a influência indevida dos judeus em Berkeley, enumerando nomes de edifícios construídos por filantropos judeus de São Francisco. No entanto, conforme observa o jornalista investigativo Lee Kaplan, Bazian recebeu um diploma de um programa que recebia pesadas doações em dinheiro da Arábia Saudita. Aparentemente, para Bazian, dinheiro judeu fomenta influência indevida, porém, não há nenhuma influência quando se trata de dinheiro saudita fundamentalista Wahhabi. Talvez Bazian devesse perguntar se há alguma coisa no Islã que faz com que tantos devotos considerem não-muçulmanos como "os outros".
Os grupos muçulmanos organizados não abraçam a Liberdade de Expressão ou de reunião, por assim dizer, como valores primordiais. Durante mais de uma década, grupos de estudantes muçulmanos fizeram uso de ataques físicos e verbais para impedir a realização de demonstrações pró-Israel e de interrupções de palestrantes, permeando todo o sistema de ensino superior da Califórnia.
Em fevereiro de 2011, o embaixador israelense Michael Oren foi impedido, aos berros, de falar na Universidade da Califórnia, Irvine (UCI). Um ano mais tarde, a União dos Estudantes Muçulmanos da UCI convidou o conhecido Imã Malik Ali, que culpava os judeus pelo colapso financeiro e que ao mesmo tempo elogiava a UEM por interromper o discurso de Oren. Aos judeus na platéia ele disse, todos vocês são os novos nazistas.
O local onde o historiador Daniel Pipes em Berkeley iria proferir uma palestra teve que ser alterado no último minuto por motivos de segurança. Para ingressar no auditório, a platéia teve que passar por detectores de metal e por uma revista. Apesar da presença da polícia que circundava o interior do auditório, foi designada uma sala de segurança, criada especialmente para que Pipes pudesse se refugiar em caso de ataque.
Um grupo de cinquenta estudantes muçulmanos, que estavam sentados juntos no centro da platéia, se revezavam interrompendo a palestra. Um após o outro, a polícia teve que retirar os bagunceiros e quando mulheres muçulmanas tiveram que ser retiradas, o grupo anunciava que era proibido que policiais as retirassem porque não era permitido homens encostarem em mulheres. Quando chegou a hora das perguntas e respostas, quando os comentários de Pipes podiam ser abertamente contestados no mercado livre das ideias, os muçulmanos se retiraram em uníssono.
Uma vez fora do auditório, montaram um corredor polonês através do qual todos que saiam do auditório tinham que passar. Por alguma razão inexplicável, a polícia da universidade permitiu que fosse usada apenas uma porta de saída, de modo que todos tiveram que passar pelo corredor polonês montado pelos muçulmanos. A platéia sainte foi interpelada e em alguns casos comparecentes foram cuspidos somente por terem vindo à palestra de Pipes e também por serem judeus ou aparentavam simpatizar com os judeus.
No entanto, Malik Ali foi capaz de proferir ofensas carregadas de amargor e ódio contra os judeus para a sua platéia em um foro público, sem nenhuma necessidade de uma sala de segurança ou a presença da polícia. Isso, obviamente, é exatamente como deveria ser.
A distorção existente em nosso sistema não advém da extensão da abrangência da Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América a um Malik Ali ou a um Hatem Bazian. A distorção advém sim, da falha em educar os jovens para que deem a mesma cortesia, por exemplo, àqueles com os quais algumas organizações muçulmanas possam discordar. Ninguém os obrigou a comparecerem. São livres para não comparecerem.
Muito embora os estudantes de Berkeley tivessem sido pressionados a rescindir o convite a Bill Maher, a administração da universidade interveio de maneira adulta. Maher permanece convidado.
Ironicamente, há cinquenta anos, havia uma estranha união entre políticos de esquerda e os Estudantes a Favor de Goldwater, ambos procurando desmontar as barricadas que impediam a Constituição de entrar pelo portão do campus: naquela época os regulamentos da universidade proibiam qualquer tipo de organização política dentro do campus. A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América, por estar relacionada direitamente às atividades políticas externas, não se estendia para além do portão do campus, o MLE foi criado para acabar com essa restrição. Convidar Bill Maher a participar da comemoração do 50º aniversário do MLE, se encaixa sobremaneira. Os estudantes de Berkeley deveriam ser livres para ouvir uma voz dissidente. Isso, afinal de contas, é a razão de Mario Savio estar nas escadarias do Sproul em 2 de dezembro de 1964.
Abraham H. Miller é professor emérito de ciência política e colaborador do Franklin Center for Government and Public Integrity. Autor de Fourteenth Street, A Chicago Story, uma obra de ficção política.