Nos protestos do ano passado, os manifestantes de Hong Kong balançavam a bandeira americana. A China sabe muito bem o significado daquele pequeno posto avançado na frente da sua porta, que conta comliberdade de expressão e estado de direito. Você viu alguma bandeira europeia sendo balançada em Hong Kong? Não, há motivos de sobra. Foto: manifestantes, muitos balançando bandeiras americanas, participando de um comício pró-democracia em Hong Kong em 14 de outubro de 2019. (Foto: Anthony Wallace/AFP via Getty Images) |
Na esteira da aprovação pela China de uma nova lei de segurança nacional para Hong Kong, que na realidade joga uma pá de cal na autonomia da antiga colônia britânica, lei esta assegurada por um tratado internacional, duas democracias anglo-saxônicas imediatamente protestaram veementemente.
Os Estados Unidos e o Reino Unido tentaram convocar uma reunião do Conselho de Segurança da ONU para discutir a questão (a China barrou). Na sequência, os governos dos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália e Canadá emitiram uma declaração conjunta enfatizando que a comunidade internacional tem forte interesse na estabilidade e autonomia de Hong Kong. O Reino Unido chegou a anunciar que estenderá a mais de três milhões de residentes de Hong Kong um visto renovável de um ano e a eventual possibilidade de obterem a cidadania britânica. O Secretário de Estado dos EUA Mike Pompeo levantou a possibilidade de cancelar a condição de parceiro comercial privilegiado que os EUA dispensaram até agora a Hong Kong e o Presidente Donald Trump anunciou a imposição de sanções contra os líderes chineses responsáveis pela introdução da lei de segurança nacional em Hong Kong.
O último governador britânico de Hong Kong, Chris Patten, salientou que a China "traiu" Hong Kong. É verdade que o regime chinês abandonou o compromisso concordado pelas partes no tratado. Mas a traição maior é a da Europa. O que a UE fez em relação a Hong Kong? Nada. Ela simplesmente permitiu que a China subjugasse e esmagasse o último bastião de liberdade.
O Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, descartou a imposição de sanções contra a China por ela introduzir a nova lei em Hong Kong. "A decisão da UE de não usar seu poder de influência mesmo sendo o maior bloco comercial do planeta contrasta gritantemente com os EUA, que ameaçam tomar medidas comerciais se Pequim prosseguir impondo leis de segurança nacional", adiantou o Politico.
Em uma audiência no Senado, o ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, anunciou que a Europa não deve se deixar levar por um conflito entre EUA e China e que "uma nova guerra fria" deve ser evitada. "Uma política destinada a isolar a China não é do interesse da Alemanha nem da Europa", observou Norbert Röttgen, presidente da Comissão de Assuntos Estrangeiros do parlamento alemão.
Essas autoridades europeias estão ventilando de forma implícita que, assim como ceder o Sudetenland da Tchecoslováquia à Alemanha nazista há cerca de 80 anos, é necessário sacrificar Hong Kong para proteger seus investimentos na China. "Ao fim e ao cabo, temo que a relação econômica com a China seja importante demais", confessou um diplomata europeu.
A autocensura da Europa em relação à China é uma coisa grotesca. Bruxelas já reescreveu um comunicado criticando a China pela maneira dela lidar com a questão do coronavírus. Para Jonathan Holslag, professor belga de política internacional, a crise é só mais um indicador do encolhimento contínuo de uma Europa oportunista diante de uma China em franco crescimento. Nicole Gnesotto, que preside o Conservatório Nacional de Artes e Ofícios da UE, observou: "a Europa é imatura: será uma doença de criança que irá passar ou uma doença genética?".
"Eu realmente espero que Angela Merkel não sacrifique os valores fundamentais da Alemanha para defender a economia e passar a mão na cabeça da China", Salientou Joshua Wong, o heroico ativista de Hong Kong. "Depender da China, mais cedo ou mais tarde, será desastroso para a Alemanha".
No ano passado a China ficou furiosa quanto ao encontro de Wong com o ministro das relações exteriores da Alemanha. Agora que a China deu o tiro de misericórdia em Hong Kong, a Alemanha quer afagar Pequim, se dispôs a fazer a "mediação" entre a China e os EUA em relação a Hong Kong. Só que não há mediação com o imperialismo chinês.
O artista e dissidente chinês Ai Weiwei atacou o afago alemão:
"França, Inglaterra e em especial a Alemanha, esta a mais sombria e ardilosa de todas, também conta com uma excelente disciplina estratégica, os alemães se identificam tanto com um estado autoritário, eles têm isso no sangue, eles amam tanto a China, dá para ver todos esses políticos (alemães), eles vão mais para a China do que visitar a própria avó. A Alemanha está liderando toda a Europa, eles são tão ambiciosos, eles querem ser líderes, mas moralmente estão extremamente colapsados. Tanta armação da Alemanha. É por isso que a família europeia não confia na Alemanha. Eles querem cair fora porque os alemães obtêm os maiores benefícios da China. Os líderes industriais alemães anunciaram oficialmente que o futuro da Alemanha pertence à China. Os bancos alemães, a tecnologia alemã, estão realmente apoiando tudo isso com eficiência. E não é possível ver líderes alemães criticarem abertamente a China, mesmo durante essa crise do vírus e pode-se dizer o mesmo com respeito a todas as nações europeias. Estou realmente preocupado. O Ocidente está indo por água abaixo num piscar de olhos porque não defende seus princípios".
A Europa está se iludindo com a China. Conforme observou o estudioso francês François Heisbourg: "a China é um predador e a Europa é sua presa".
"Em todo o mundo vozes se levantaram em apoio aos bravos manifestantes pró-democracia de Hong Kong", escreveu o escritor norte-americano George Weigel. "Alguém ouviu a voz da Santa Sé? Em caso afirmativo, eu não ouvi, assim como muitas outras pessoas não ouviram".
A UE e o Vaticano ficaram em silêncio quanto ao fato da China ter-se apossado de Hong Kong. Joseph Zen, bispo de Hong Kong também teceu críticas: "lamento dizer que não temos nada a esperar do Vaticano. Nos últimos anos eles jamais disseram uma palavra para censurar a perseguição perpetrada pela China". Eles "entregaram a Igreja à autoridade chinesa".
O jornal Civiltà Cattolica, editado por jesuítas e revisado pelo Vaticano antes da publicação, acaba de lançar uma nova edição chinesa. De acordo com o especialista em assuntos relacionados ao Vaticano John L. Allen Jr., é a prova cabal de um "Vaticano galanteando a China de forma abrangente". Ao que tudo indica, o pacto do Vaticano com a China comprou o silêncio da Santa Sé às custas não só de milhões de católicos, mas também de Hong Kong. "Estamos nas fases finais de um longo processo de rendição", concluiu o cardeal Zen.
Graças à aliança de democracias em torno dos Estados Unidos, a estratégia de contenção e a luta por valores que possibilitaram a deslegitimação das mentiras e do terror que serviram de suporte para o comunismo soviético, o Ocidente conseguiu derrotar o Império Soviético e provocar a derrocada por implosão. O Ocidente de hoje possui todos os recursos necessários para conter o imperialismo comunista da China. A única coisa que falta é a vontade da Europa de se defender. Ainda há tempo para evitar o erro fatal cometido na década de 1930, quando as democracias da Europa foram dilaceradas pelo aviltamento diante da ascensão do totalitarismo. A Europa precisa acordar e conter a China.
O líder espiritual do Tibete, Dalai Lama, também pediu à Europa para que ela não contemporizasse a China: "Na época de Chamberlain, pouco antes da Segunda Guerra Mundial, muito apaziguamento não deu em nada", salientou ele, referindo-se à tentativa equivocada do primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain de costurar um acomodamento com a Alemanha de Hitler na década de 1930. Nas palavras de Churchill escritas para Chamberlain: "você teve a escolha entre a guerra e a desonra. Você escolheu a desonra e terá a guerra".
"Por que morrer por Danzig?", perguntou o pacifista francês Marcel Déat em 1939. Ele quis dizer que a sorte da cidade de Danzig não valia a pena um confronto. Ele defendeu o apaziguamento com a Alemanha nazista, que exigia anexar a Cidade Livre semi-autônoma de Danzig.
"Por que morrer por Hong Kong?", os europeus parecem dizer agora.
Nos protestos do ano passado, os manifestantes de Hong Kong balançavam a bandeira americana. A China sabe muito bem o significado daquele pequeno posto avançado na frente da sua porta, que se recusa dizer amém, que conta com liberdade de expressão, estado de direito e liberdade religiosa, inimagináveis na China continental.
Você viu alguma bandeira europeia sendo balançada em Hong Kong? Não, há motivos de sobra.
Giulio Meotti, Editor Cultural do diário Il Foglio, é jornalista e escritor italiano.