A alegação do Secretário de Estado dos EUA John Kerry que a falta de uma "solução de dois estados" tem posto mais lenha na fogueira do grupo terrorista Estado Islâmico (EI) mostra, mais uma vez, o quão ingênua a administração dos EUA é em relação aos acontecimentos nos países árabes e islâmicos.
Discursando na cerimônia no Departamento de Estado em homenagem ao feriado de Eid al-Adha, Kerry afirmou que a retomada das negociações entre Israel e os palestinos era vital na luta contra o extremismo islâmico, inclusive o Estado Islâmico.
'Esqueça o EIIS... vamos falar sobre um estado palestino'. Acima, o Secretário de Estado dos EUA John Kerry cumprimenta o Representante Especial dos EUA para as comunidades muçulmanas Shaarik Zafar durante uma recepção do Eid al-Adha em 16 de outubro de 2014 no Departamento de Estado dos EUA em Washington, D.C. (imagem: Departamento de Estado) |
"Não houve nenhum líder com quem eu me encontrei na região que não tivesse levantado a questão, de forma espontânea, da necessidade de se tentar obter a paz entre Israel e os palestinos, porque era essa uma das causas do recrutamento (do EI), da agitação e provocação nas ruas", segundo Kerry. "As pessoas têm que entender a conexão desses fatores. E também tem alguma coisa a ver com a humilhação, negação e falta de dignidade".
Mais tarde o Departamento de Estado dos EUA negou que Kerry tivesse feito a declaração atribuída a ele.
A porta-voz adjunta Marie Harf explicou, aos jornalistas, que os comentários de Kerry foram distorcidos por razões políticas, se referindo ao Ministro da Economia de Israel Naftali Bennett.
"O que (Kerry) disse foi que em suas viagens para criar uma coalizão contra o Estado Islâmico, foi informado de que se o conflito israelense/palestino fosse solucionado, o Oriente Médio não teria tantos problemas", explicou Harf.
O Estado Islâmico é um dos subprodutos da "Primavera Árabe", que começou como uma revolta secular contra as ditaduras árabes e se deteriorou em anarquia, desrespeito à lei, terrorismo e massacres que custaram a vida de centenas de milhares de árabes e muçulmanos.
A "Primavera Árabe" não eclodiu em consequência do conflito israelense/palestino. Na realidade foi o resultado natural e inevitável de décadas de tirania e corrupção no mundo árabe.
Os tunisianos, egípcios, líbios e iemenitas que derrubaram os ditadores não os depuseram por falta de uma "solução de dois estados".
Nem os árabes se revoltaram por causa do fracasso do processo de paz entre Israel e os palestinos. Essa é a última coisa que os árabes tinham em mente quando tomaram as ruas para protestar contra décadas de ditadura e governo ruim.
É a "Primavera Árabe", não o conflito israelense/palestino que levou a Irmandade Muçulmana ao poder no Egito. E se trata da mesma "Primavera Árabe" que testemunhou o surgimento de grupos terroristas islâmicos como a Frente Al-Nusra, a Frente Islâmica, o Exército dos Mujahidin, Jund al-Sham e, mais recentemente o Estado Islâmico do Iraque e da Síria.
A ascensão do Estado Islâmico é o resultado direto da anarquia e do extremismo que vêm envolvendo os países árabes e muçulmanos nos últimos anos.
Os milhares de muçulmanos que estão se voluntariando para se juntarem ao Estado Islâmico não o estão fazendo porque estão frustrados com a falta de progresso nas negociações de paz israelense/palestinas. Eles não estão batendo nas portas do Estado Islâmico porque estão frustrados pelo fato da solução de dois estados não ter se concretizado.
Kerry é ingênuo se acha que os jihadistas acreditam em alguma coisa chamada de solução de "dois estados". A única solução na qual o Estado Islâmico acredita é aquela que levaria à criação de um califado islâmico sunita radical, por todo o Oriente Médio, onde os não muçulmanos sobreviventes, não massacrados, teriam que se sujeitar à lei da sharia.
O Estado Islâmico não é só contra a "solução de dois estados", mas também é contra a existência tanto de Israel quanto de um estado palestino. Sob o regime de um califado islâmico, não há espaço para Israel ou Palestina ou qualquer um dos países Árabes ou Islâmicos.
Se Kerry se interessasse em saber mais sobre os objetivos e sobre a ideologia do Estado Islâmico, ele teria descoberto que o conflito israelense/palestino não está nem no topo da lista das prioridades do grupo.
Na realidade, a "liberação de Bait al-Maqdis" (Jerusalém) está em sexto lugar na lista dos objetivos do Estado Islâmico.
O objetivo mais importante do grupo é espalhar o caos nos países árabes e muçulmanos.
Segundo, o grupo pretende ir em frente e aplicar, nesses países, o que chama de "gerenciamento da selvageria".
Terceiro, o Estado Islâmico irá começar o processo de criação do califado islâmico.
Quarto, irá prosseguir com a "libertação dos países vizinhos e a expansão do califado islâmico.
Quinto, o grupo iniciará o processo de "libertação dos países islâmicos", inclusive Bait al-Maqdis.
Obviamente, Kerry não está a par do discurso proferido pelo líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi no último mês de julho.
Al-Baghdadi não disse nada sobre a "solução de dois estados". Nem conclamou os muçulmanos a se juntarem ao seu grupo por conta da falta de progresso no processo de paz israelense/palestino.
Nada disso, al-Baghdadi disse a seus seguidores que, "Alá quer que matemos seus inimigos e que empreendamos a jihad por amor a ele. Oh Alá, conceda vitória ao Islã sobre a descrença e sobre os incrédulos e conceda vitória aos Mujahidin, no Oriente e no Ocidente da terra".
O que Kerry talvez não saiba é que o Estado Islâmico não dá mínima para o conflito israelense/palestino. O grupo terrorista nem sequer se deu o trabalho de comentar o último confronto entre Israel e o Hamas na Faixa de Gaza.
A omissão por parte do Estado Islâmico em manifestar solidariedade para com os palestinos ou com o Hamas durante a guerra provocou fortes condenações de alguns dos mais respeitáveis colunistas do mundo árabe.
"O mais chocante e estranho é que o Estado Islâmico e demais grupos terroristas que alegam falar em nome do Islã, não levantaram um dedo sequer enquanto aviões israelenses bombardeavam civis na Faixa de Gaza," observava o colunista egípcio Jamil al-Afifi. "Nenhum de seus sábios se levantou para condenar os cruéis assassinatos (na Faixa de Gaza).
Kerry não revelou a identidade dos "líderes" que lhe disseram que a ausência de paz entre Israel e os palestinos era uma das "causas do recrutamento, da agitação e provocação nas ruas" nos países árabes e islâmicos.
Entretanto, o que está claro é que os estudiosos da seita sunita não parecem compartilhar com a avaliação de Kerry.
No mês passado, mais de 120 estudiosos da seita sunita emitiram uma carta aberta censurando o Estado Islâmico bem como seus argumentos religiosos. "Vocês interpretaram mal o Islã, transformando-o em uma religião perversa, cruel, em que se pratica torturas e assassinatos", segundo a carta. "É um erro e uma ofensa muito grande em relação ao Islã, aos muçulmanos e ao mundo inteiro".
Desnecessário salientar que os estudiosos não disseram uma palavra sobre o conflito israelense/palestino como causa da ascensão do Estado Islâmico.
Isso porque, diferentemente de Kerry, os estudiosos da seita sunita sabem que o Estado Islâmico não tem nada a ver com o conflito israelense/palestino. E diferentemente de Kerry, estudiosos muçulmanos sabem perfeitamente que o Estado Islâmico tem mais a ver com o Islã e o terrorismo do que com qualquer outro conflito.