O documento retratando o Hamas como grupo moderado que aceita a "solução de dois estados" não passa de conversa fiada cuja intenção é fazer com que a comunidade internacional caia no conto do vigário. Como o próprio Mashaal (foto acima) explicou, ainda que o Hamas aceite um estado palestino na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, isso não quer dizer que algum dia reconheceria o direito de Israel de existir. (Foto:Mohammed Saber/AFP via Getty Images) |
Um dos argumentos usados contra a recente decisão do governo britânico de classificar o Hamas como organização terrorista extremista é que o movimento radicado em Gaza, que não reconhece o direito de Israel de existir, não é mais o mesmo e agora apoia a criação de um estado palestino ao lado de Israel.
Opositores da decisão do Reino Unido alegam que em 2017 o Hamas "moderou a postura em relação a Israel ao aceitar a ideia de um estado palestino nos territórios ocupados por Israel na guerra de seis dias em 1967".
A pretensa mudança, argumentam eles, foi incluída em um novo documento anunciado pelo líder do Hamas Khaled Mashaal em uma entrevista coletiva em Doha, no Catar. Segundo consta Mashaal disse o seguinte:
"o Hamas defende a libertação de toda a Palestina, mas está disposto a aprovar o estado palestino nas fronteiras de 1967 sem reconhecer Israel nem ceder nenhum direito."
Um ano depois, no entanto, Mashaal salientou em uma entrevista com a rede de televisão Al-Jazeera, de propriedade do Catar, que o documento "não representava nenhuma mudança tática nem estratégica", acrescentando que o Hamas não mudou nem abandonou seu estatuto de 1988. "Queremos continuar a resistência contra Israel", ressaltou o líder do Hamas.
Há três pontos que precisam ser levados em consideração ao abordar o documento de 2017 do Hamas.
Primeiro, o documento retratando o Hamas como grupo moderado que aceita a "solução de dois estados" não passa de conversa fiada cuja intenção é fazer com que a comunidade internacional caia no conto do vigário. Como o próprio Mashaal explicou, ainda que o Hamas aceite um estado palestino na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, isso não quer dizer que algum dia reconheceria o direito de Israel de existir. O Hamas, em suma, está dizendo: vamos aceitar tudo o que nos for dado agora, começando com um estado palestino e o usaremos para massacrar Israel.
Segundo, o Hamas não renunciou à violência nem ao terrorismo. Na verdade, o grupo pretende continuar a "resistência" e a jihad (guerra santa) contra Israel depois do estabelecimento do estado palestino com o propósito de "libertar toda a Palestina". Quando os líderes do Hamas falam em "resistência", eles estão se referindo entre outras coisas ao assassinato de judeus por meio de atentados suicidas, esfaqueamentos, rajada de tiros disparadas do interior de um veículo em movimento e foguetes disparados da Faixa de Gaza contra cidades e vilas israelenses.
Terceiro, o novo documento não cancelou nem alterou o conteúdo da carta do Hamas que, de acordo com os líderes do Hamas, continua válida e relevante até os dias de hoje.
Khaled Qaddoumi, representante do Hamas no Irã confirmou em 2017 que o documento do Hamas não significa que seu grupo "abrirá mão de algum espaço da Palestina" nem interromperá os ataques terroristas contra Israel. Qaddoumi esclareceu que a conversa sobre o Hamas aceitar um estado palestino na Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental fazia parte do contexto de um plano de destruir Israel em fases.
Perguntaram a Qaddoumi: "entendemos que você (Hamas) está tentando libertar a Palestina em fases?"
Ele respondeu explicando que mesmo que o Hamas aceite um estado palestino nas fronteiras pré-1967, ele jamais reconhecerá o direito de Israel de existir:
"não aceitamos o conceito de reconhecer a entidade sionista em troca de um estado palestino. O conceito que nós aceitamos é o que diz que se pode libertar parte da pátria agora para libertar a outra parte (mais tarde). É isto que o Hamas quer dizer e foi exatamente isto que aconteceu quando a Faixa de Gaza foi libertada ou quando a entidade sionista foi despejada de lá à força. Após a retirada israelense, começamos a construir nossa infraestrutura militar e de equipamentos no sentido de prosseguirmos para o estágio da luta para a libertação."
Este funcionário de alto calibre do Hamas merece o reconhecimento pelo mérito de ser transparente sobre os verdadeiros objetivos do Hamas. Ele também está certo sobre o que aconteceu após a retirada israelense da Faixa de Gaza em 2005. Embora Israel tenha se retirado de todo o enclave costeiro, o Hamas continuou a disparar foguetes contra Israel.
O Hamas e outros palestinos viram a saída israelense como retirada diante do terrorismo. Além disso, eles viram a atitude israelense como sinal de fraqueza e uma oportunidade de usar a Faixa de Gaza como plataforma de lançamento para "libertar o resto da Palestina" e expulsar os judeus não só da terra natal dos judeus como também de toda a região. É exatamente a isso que Qaddoumi se refere quando fala sobre o Hamas caminhar para o "estágio da luta para a libertação".
A exemplo da maioria dos líderes do Hamas, Qaddoumi também salienta que seu grupo permanece comprometido e leal ao estatuto de 1988, que traça assim a estratégia do grupo:
"o Movimento de Resistência Islâmico (Hamas) sustenta que a terra da Palestina é uma Wakf islâmica (legado hereditário) para todas as gerações até ao Dia da Ressurreição, ninguém pode renunciá-la ou parte dela, ou abandoná-la ou parte dela. Nenhum país árabe nem o agregado de todos os países árabes e nenhum rei ou presidente árabe... tem esse direito." (Artigo 11)
A seguir o que o estatuto diz sobre iniciativas de paz e planos para resolver o conflito árabe-israelense:
"as iniciativas de paz, as assim chamadas soluções pacíficas e as conferências internacionais para resolver o problema palestino, são todas contrárias às convicções do Movimento de Resistência Islâmica. Porque renunciar a qualquer parte da Palestina significa renunciar parte da religião... o movimento educa seus membros a aderirem aos seus princípios e levantarem a bandeira de Alá sobre sua pátria ao lutarem a jihad (contra Israel)... Não há solução para o problema palestino exceto a jihad." (Artigo 13)
O Hamas, obviamente, nunca perde a oportunidade de lembrar a seus seguidores e ao resto do mundo que permanece fiel às palavras do profeta Maomé, que disse:
"A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e terminem por matá-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: Oh! Muçulmanos, Oh! Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venha e mate-o" (Artigo 7)
Enquanto os defensores do Hamas condenam a decisão britânica de rotulá-la de organização terrorista, os líderes do grupo continuam discutindo seu inabalável compromisso com a destruição de Israel.
Dias após o anúncio da decisão, o líder da liderança do Hamas salientou em uma declaração publicada em 29 de novembro de 2021:
"a Palestina, toda a Palestina, do Mar Mediterrâneo ao Rio Jordão é para o povo palestino e não há lugar ou legitimidade para estranhos em nenhum centímetro dela. A resistência de fora a fora é um direito legítimo garantido por todas as leis internacionais, entre as quais se destaca a resistência armada contra o inimigo sionista que usurpou nossas terras. Reverter os fatos e integrar a ocupação na região não terá sucesso e o inimigo sionista continuará sendo o inimigo nº1 de nosso povo palestino e da nação islâmica."
Ao mesmo tempo em que os apoiadores do Hamas dizem que a decisão britânica é prejudicial ao processo de paz entre Israel e os palestinos, os líderes do grupo continuam debatendo a melhor forma de impedir qualquer tipo de normalização de relações entre árabes e judeus.
Em 2 de dezembro, Ismail Haniyeh, líder do Hamas preconizou um "plano abrangente para impedir a normalização" entre Israel e o mundo árabe. "Temos que acabar com a normalização e evitar que este tumor cancerígeno se espalhe pelo corpo da nação islâmica", ressaltou ele. O líder do Hamas, na realidade, está dizendo que seu grupo, com a ajuda de outros muçulmanos, está determinado a lutar contra os tratados de paz entre Israel e os países árabes.
O Hamas, evidentemente, não mudou nem "moderou" sua posição em relação a Israel. A realidade é justamente o contrário. Desde que o documento de 2017 foi anunciado por Mashaal, o Hamas disparou milhares de foguetes contra Israel e realizou dezenas de ataques terroristas contra israelenses. As declarações dos líderes do Hamas mostram que eles se vestem muito menos em pele de cordeiro do que muitos de seus defensores no Ocidente, que afirmam compreender o Hamas melhor do que o próprio Hamas sabe de si.
Os defensores do Hamas, especialmente os que não falam o idioma árabe, devem ficar de olho nas traduções do árabe para compreender a verdadeira natureza do Hamas e às declarações de seus líderes. Talvez isso faça com que alguns parem de dourar a pílula do Hamas e fazer mau uso dos fatos, principalmente, e ao que tudo indica, por conta do ódio a Israel e da recusa em aceitar sua presença no Oriente Médio.
Khaled Abu Toameh é um jornalista premiado radicado em Jerusalém.