Em 1988 foi publicado o livro The Satanic Verses, escrito por Salman Rushdie (esquerda), cidadão britânico. Em 1989 o "Líder Supremo" do Irã Aiatolá Ruhollah Khomeini (direita) condenou Rushdie à morte por ter escrito o livro. Parece que o caso Rushdie também moldou profundamente a sociedade britânica. (Imagem: Rushdie - Andrew H. Walker/Getty Images; Khomeini - Mohammad Sayyad/Wikimedia Commons) |
Há três anos o governo italiano tomou uma decisão vergonhosa. Ele cobriu as antigas estátuas romanas para não ofender o presidente do Irã, Hassan Rouhani que visitava o país. Estátuas nuas foram armazenadas em caixas brancas. Um ano antes, em Florença, uma estátua de um homem nu em estilo greco-romano também foi coberta durante a visita do príncipe herdeiro de Abu Dabi. Agora, uma das galerias de arte mais famosas da Grã-Bretanha cobriu duas pinturas por conta de queixas de muçulmanos que segundo eles eram "blasfemas".
Na Saatchi Gallery, em Londres, duas obras exibindo nus, desta vez sobrepostas com escrita árabe, originaram reclamações de visitantes muçulmanos que solicitaram que as pinturas fossem retiradas da exposição Rainbow Scenes. Ao fim e ao cabo, as pinturas foram envoltas em tecidos."A Saatchi está procedendo como a Arábia Saudita, escondendo obras de arte do público que blasfemam o Islã", salientou Brendan O'Neill no site Spiked. Um especialista definiu o caso das pinturas como "repetição dos Versos Satânicos". Ele se referia ao livro de Salman Rushdie, cidadão britânico, que foi publicado em 1988. Em 1989 o então líder supremo do Irã, Aiatolá Ruhollah Khomeini condenou Rushdie à morte por ter escrito o livro. A recompensa pela cabeça de Rushdie foi elevada para US$4 milhões em 2016, quando um grupo de iranianos acrescentou US$600 mil à "recompensa", sem nenhum protesto da Grã-Bretanha.
Foi depois da publicação dos Versos Satânicos de Rushdie que muitas editoras ocidentais começaram a se curvar à intimidação islamista. Christian Bourgois, uma editora francesa que comprou os direitos da obra se recusou a publicar Os Versos Satânicos. Foi a primeira vez que, em nome do Islã, um escritor foi condenado a desaparecer da face da terra, condenado a ser assassinado por uma recompensa.
Rushdie ainda está entre nós, mas o assassinato de Theo van Gogh em 2004 por produzir e dirigir o filme "Submission", sobre a violência islâmica contra as mulheres, a morte de tantos intelectuais árabes/islâmicos culpados por escreverem livremente, os tumultos ocorridos na Dinamarca por conta das caricaturas e os inúmeros julgamentos (para acessar alguns exemplos, clique aqui e aqui), tentativas de assassinatos (clique aqui e aqui), o massacre na redação da revista satírica francesa Charlie Hebdo, os ataques após o discurso do Papa Bento em Regensburg, o cancelamento da publicação de livros e de peças teatrais, representações de Maomé fechadas em armazéns de museus e as crescentes ameaças e punições, incluindo açoitamentos, a um sem número de jornalistas e escritores como Raif Badawi da Arábia Saudita, deveriam nos alarmar, não nos colocar de joelhos.
Como mostra a capitulação da Saatchi Gallery, a liberdade de expressão na Europa já se encontra exaurida e desidratada. Até agora nós nos curvamos diante dos extremistas islâmicos e dos contemporizadores ocidentais. É a trágica lição do caso Rushdie 30 anos depois: nenhum escritor ousaria escrever hoje Os Versos Satânicos, nenhuma grande editora como a Penguin a publicaria, os ataques da mídia aos "islamófobos" seriam ainda mais intensos, assim como a inexaurível traição dos diplomatas ocidentais. Hoje também, graças às redes sociais, usadas como arma de censura e implícitas ameaças às massas, qualquer escritor provavelmente seria menos afortunado do que Rushdie foi há 30 anos. De lá para cá, não fizemos nenhum progresso. Muito pelo contrário, estamos testemunhando a jihad contra Os Versos Satânicos, a mesma arenga requentada de sempre.
"Hoje ninguém teria coragem para escrever o livro 'Os Versos Satânicos e muito menos publicá-lo," ressaltou o escritor Hanif Kureishi. "escrever virou uma atividade amedrontadora porque os escritores agora estão aterrorizados".
Conforme o escritor Kenan Malik salientou em 2008:
"Não se trata de um sistema de censura formal, no qual o Estado proíbe atividades consideradas ofensivas. A rigor, emergiu uma cultura de autocensura na qual a afronta passou a ser vista como moralmente inaceitável. Nos 20 anos desde a publicação dos Versos Satânicos, a fatwa foi efetivamente internalizada".
Parece que o caso Rushdie também moldou profundamente a sociedade britânica. A rendição da Saatchi Gallery em Londres não é singular. A galeria Tate Britain guardou a escultura, "Deus é Grande", de John Latham, sobre o Alcorão, a Bíblia e o Talmud encrustada em vidro. A peça de teatro "Tamburlaine the Great" de Christopher Marlowe foi censurada no Barbican Centre. Nela havia uma referência ao Profeta do Islã "não digno de adoração", bem como uma cena na qual se ateia fogo no Alcorão. A Whitechapel Art Gallery em Londres excluiu uma exposição contendo bonecas nuas porque elas poderiam causar constrangimento à população muçulmana. Nas Galerias Mall em Londres, a pintura, "ISIS Threaten Sylvania", do artista Mimsy, foi censurada por mostrar bichinhos de pelúcia terroristas prestes a massacrar bichinhos de pelúcia em um piquenique.
No Royal Court Theatre em Londres, Richard Bean foi forçado a autocensurar sua peça por conta da adaptação de "Lysistrata", a comédia grega em que as mulheres fazem greve de sexo para deter os homens de irem à guerra. Na versão de Bean, as virgens islâmicas entram em greve para deterem terroristas suicidas.
Lamentavelmente, em nome da luta contra a "islamofobia", o establishment britânico parece estar se curvando à insidiosa sharia, expurgando e censurando sua própria fala por conta própria.
Recentemente intelectuais conservadores de prestígio foram demitidos no Reino Unido. Um deles é o inigualável filósofo Roger Scruton, demitido de um comitê governamental por dizer que o termo "islamofobia" foi inventado pela Irmandade Muçulmana "para impedir o debate sobre um problema da mais alta importância".
Depois foi a vez do expoente psicólogo canadense Jordan Peterson, convidado como visitante ilustre da Universidade de Cambridge que teve o cargo rescindido por posar ao lado de um homem que vestia uma camiseta com os dizeres: "Islamófobo com orgulho". O professor Peterson disse mais tarde que a palavra "islamofobia" foi "concebida em parte por pessoas envolvidas com o extremismo islâmico, para assegurar que o islamismo não seja criticado como estrutura".
"Os casos Scruton e Peterson só fazem confirmar o verdadeiro significado do termo "islamofobia", inventado com o intuito de silenciar qualquer crítica ao Islã de qualquer um, conforme Salman Rushdie observou: um termo "criado para ajudar os cegos a permanecerem cegos". Cadê a reação que não chega nunca?
Em um artigo de 2008, Tim Walker do The Telegraph cita o famoso dramaturgo Simon Gray dizendo que Nicholas Hytner, diretor do National Theatre de Londres de 2003 a 2015, "se sente bem em ofender os cristãos", mas "fica com o pé atrás em fazer gracinhas que possam eventualmente chatear os muçulmanos". Os últimos que fizeram gracinhas foram os jornalistas da revista satírica francesa Charlie Hebdo. Eles pagaram com suas próprias vidas. Ao se recusarem a confrontar o patrulhamento ideológico policial, defenderem a liberdade de expressão de Salman Rushdie, Roger Scruton, Jordan Peterson, Charlie Hebdo e Jyllands-Posten, para citar apenas e tão somente a ponta do gigantesco iceberg, iniciamos o caminho ladeira abaixo da capitulação frente à lei da sharia e à tirania. Todos nós estivemos e estamos cobrindo nossa hipotética cultura "blasfema" com burcas para não ofender aqueles que ao que tudo indica, não dão a mínima em nos ofender.
Giulio Meotti, Editor Cultural do diário Il Foglio, é jornalista e escritor italiano.